crisálida


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"Não te cortes, Alice. Eu não quero saborear o teu sangue", disse-lhe, enquanto a olhava, e ela se olhava também, em frente ao espelho das desilusões. Como podia afastá-la daquele reflexo que até a ele atormentava? Como uma traça envolta na perdição de uma luz perfeita, Alice tocava na superfície espelhada e, mesmo quando a chama lhe ardia na pele, mesmo com as mãos em carne viva, deixava a vontade própria cair ao chão, junto às rendas e desejos, e atirava-se conta os vidros estilhaçados. Os passos quebrados de ambos ecoavam por toda a casa.
Ele nada podia fazer. Nunca conseguira contrariar as vontades dela. Os caprichos. As angústias. Os medos. Tardava em compreender aquela mulher. Mulher? Menina... Sabia lá ele o que se escondia por detrás daqueles olhos que o encadeavam e do sorriso onde residia a esperança do amanhã. Tinha andado perdido toda a vida e perdera-se de amores pelas mãos de Alice. Nunca vira mãos tão esguias e delicadas. Os dedos compridos mas fortes resgataram-no das pedras da calçada, remendaram-lhe a pele, coseram-lhe o coração à carcaça que era ele naqueles dias, o homem que não via outro destino que não a podridão sob as folhas varridas pelo vento, caídas das árvores desnudas. Alice, cheia de vida e com a sombra da morte entre os lençóis. Alice dos dedos compridos, das linhas e agulhas, tece os corpos, remenda os sorrisos, faz baínhas na solidão, onde esconde as dores e uma ou outra lágrima por cair.
Ele não poderia nunca saborear o sangue de Alice. Mesmo se todos os pedaços de vidro lhe cravassem o corpo, mesmo que o sangue escorresse pelas coxas e pelo sexo, mesmo que ele lambesse cada lágrima de sangue rubro na pele de porcelana dos seus braços, Alice saberia sempre ao tesouro escondido e nunca revelado. Porque há sempre um pote de ouro na outra ponta do arco-íria e ele não acreditava em contos de fadas.
Naquela noite chovera. Chovera tão intensamente que ambos se permitiram chorar até as entranhas secarem. E mesmo quando secaram, pediram às mágoas mais um esforço e espremeram os restos do sal misturado com algumas gotas de sangue. Depois pararam. Ficaram a ouvir a chuva a cair, beberam um do outro, acalmaram a comoção provocada pelos reflexos dos olhares. Então, sentados no chão de madeira e presos ao sabor da pele, deram as mãos e prometeram encontrar-se. Estarei na outra ponta do arco-íris, quando voltar a chover, disse ela. E eu estarei do outro lado do espelho, onde te encontrei, confirmou ele. Apressa-te a vir-me salvar, pediu Alice. Porque eu não sei quanto tempo consigo pairar, suspensa nesta luz que me mata, que me embrulha o corpo num turbilhão de fantasmas e vozes. Promete que procuras por mim. Porque em breve se extinguem as mil cores dos meus olhos. Porque em breve não resistirei a esta crisálida que cresce sob a minha pele e eu própria me atirarei contra o espelho, para tentar chegar a este lado. Em mil pedaços eu, em mil cacos os vidros. Não vislumbras, já, os teus dentes a dilacerar a minha carne, os teus dedos a escorregar no sangue dos meus? Sacrifiquemo-nos um ao outro. Vamos percorrer-nos mesmo que seja preciso pisar com força os vidros de um espelho que ora se parte, ora volta a encaixar todas as peças. No fim, a chuva tudo lavará.
Eu sei que não queres que eu me corte, que não queres saborear o meu sangue. Mas e se não tiveres outra escolha, para que eu possa viver nas tuas palavras?


royale


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foto de raio de sol

Aguardo, tranquilamente, pelo teu regresso.
Nesta mesa onde repousa a respiração teço as cores de uma bebida
suave e picante
no teu corpo ausente.
Dois copos
Almas de vidro
Deixa esse sorriso sofrido e embriaguemo-nos no aroma.
Frio e quente
Não há senão o que se sente.
O dia sabe a hortelã.



Mas porque não se calam estas vozes na minha cabeça?...



O título não é meu, confesso. É de uma qualquer escritora, que escreveu um qualquer livro, que vi num qualquer programa de televisão. Tenho pena que não seja meu. Mas adaptei-o ao meu corpo e aos meus passos. Peguei na ideia original e debrucei-me sobre ela com o mesmo carinho que Alice confere ao corpo do amante que salvou das pedras da calçada. Chove e as gotas rebolam pelo telhado das águas-furtadas de Alice. Rebolam as lágrimas pela pele alva e a chuva embala os desejos. Está escuro, o dia começa, as nuvens escondem o raiar de uma esperança. Ele abraça-a com força. Gosta do calor do peito de Alice, sente-lhe o cheiro e repousa, enebriado. Ela ouve a chuva. Sente as lágrimas do céu. Abraça o tronco quente e enrosca-se em redor de uma certeza. Os dois fazem poesia numa cama onde as gotas de água calam as palavras. São mágoas furtadas a despontar no dia chuvoso. Vozes dementes suspensas pelas gotas de chuva que calam os corpos. São mágoas cruzadas em dias cinzentos e frios.



Tiriri tiriri...
- Sim...?
- Ó L., "impor" leva acento circunflexo?
- Não. "Pôr" tem acento, "impor", "dispor", essas não...
- Obrigada.
- De nada...

Tiriri tiriri...
- Yellow!
- Ó L., "área" leva acento para que lado?
- Para o lado direito. O acento agudo...
- Não é o acento do "à", pois não?
- Não, é o outro...
- Obrigada.
- De nada...

Tiriri tiriri...
- Alô...
- Ó L., como é que se escreve...
- Olha lá, mas eu tenho cara de prontuário?!



Conversa ouvida não intencionalmente:
- Ó mãe, mas não quero que faças sopa com essas couves. Há sopas tão boas, de agrião, com nabiça... Porque é que tu e a Júlia fazem sempre essas sopas com couves horríveis? Mas também não sei se vou jantar a casa...

E penso no arroz com atum e salsicha que fazia quando estava a estudar, e nas noites de agora em que chego a casa muito depois das mercearias fecharem e ligo para a telepizza ou compro frango assado no restaurante de aspecto duvidoso ao pé de casa. É bom ser independente, caraças. A mim ninguém me obriga a comer couves que não gosto!


mr. numb


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excerto de "A apatia é o melhor dos mundos", L.A.

Olha para mim! Vês o vazio na carcaça dos meus pensamentos? Falhei em tudo. Nunca quis nada e até na infinidade do vazio falhei. Sou pó e ao pó me juntarei. No meu cérebro sinto já as garras dos loucos, as unhas da demência cravadas nos meus piores medos, dos terrores que piso em vão no discorrer dos dias. Tenho de sair daqui!! É escusado atirares-me com esse ar condescendente. Acabarás como eu, diluído na água dos esgotos, tacteando uma saída no escuro e asfixiado pela própria respiração. Tens um cigarro? Apetece-me acelerar o processo. Somos todos loucos, de facto, não sabes? Deliciosamente loucos. É por isso que este banco, este espaço por detrás da minha consciência, é o melhor dos mundos. Onde ninguém me pode fazer mal, a não ser eu próprio. Alguma vez provaste o sabor adocicado do sangue? É bom...


waking up


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"Tinha sonhado com algo completamente diferente do que a realidade me oferecia agora, mas esse sonho fora a visão de um cego. Esse sonho era um milagre. A manhã desvanecia-se. E recordei-me uma vez mais que era apenas um turista naquele lugar."
in "Lunar Park", Bret Easton Ellis


sílvia


Hoje a chuva inquieta lavou-nos as lágrimas que chorámos por ti. Tinhas 23 anos. Tinhas um sorriso. Hoje tiveste-nos junto a ti pela pior razão. E pela última vez. Hoje percebi que ser adulta é isto mesmo. É perder uma amiga, é enterrar alguém com apenas 23 anos, é planear visitar-te para acompanhar a tua recuperação, é sentir o distanciamento egoísta quando me dizem que morreste, é chorar compulsivamente e aceitar um consolo, é amanhã ir trabalhar e não estares na tua mesa, não porque estás a recuperar do segundo avc, mas porque morreste. E não vais voltar. E nenhum de nós pôde dizer-te tudo o que queria antes de ires. Apanhaste-nos de surpresa. E eu ia ver-te esta semana, como prometi. Mas já não posso. E isso dói. O céu chorou por ti, hoje de manhã.


desktop


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Vejo o desktop do meu computador e, para além das pastas, dos atalhos para pastas e documentos, dos .doc, dos .xls e dos .mdb, por detrás desta imagem que me fita, estou eu.
Estão seis anos de mim aqui. Estão seis anos de pessoas que entram e saem, de vozes com quem conversei e das quais nunca vi o rosto, estão centenas de horas a bater texto, estão alegrias, angústias e frustrações, estão bons trabalhos, estão maus trabalhos. Neste desktop estão emoções antigas e uma nova fase de mim. Estão aprendizagens, estão evoluções, lágrimas e sorrisos. Estão reuniões à última da hora, estão projectos em suspenso, estão ideias em progresso. Estão noites em branco a procurar cumprir prazos, está a preguiça que ataca com mais frequência do que devia.
Olho para o meu desktop e penso na menina que, na aldeia, brincava no meio dos malmequeres. Não atingi nada de fantástico na minha vida, mas olho para mim e confesso a mim própria: nunca pensei conseguir o que tenho hoje. E é bom sentir isso.


enquanto chove


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Cheirava a bolos. Aquele cheiro quente de qualquer coisa a crescer e a tomar forma dentro de um forno. Deixou-se prender pelo odor e bateu à porta. Desculpe, está a fazer um bolo? Não, por acaso é uma tarte. De maçã. Não me diga que quer uma fatia. Pois, sabe, é que eu fiz chá agora mesmo. Não quer fazer uma troca? Eu dou-lhe uma chávena de chá, e você dá-me uma fatia de tarte. Tenho uma ideia melhor. Traga daí o seu chá. Eu vou buscar a tarte. Ficamos aqui à conversa, nos degraus. Combinado. O chá é de quê? De menta, gosta? Gosto sim. Espero que goste de canela. Adoro.


cinco manias


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O desafio foi lançado.

- mania da perseguição

- mania de olhar para a boca das pessoas quando falam em vez de olhar para os olhos

- mania de enrolar os pacotes de açúcar depois de beber café

- mania de assinalar frases e parágrafos em livros

- mania das grandezas


Passo a outros e não ao mesmo.

Raio de sol
Rantanplan
rspiff (pode ser por mail :))
Arqgio
Katraponga





"In a manner of speaking
In a manner of speaking I just want to say
That I could never forget the way
You told me everything
By saying nothing
In a manner of speaking I don’t understand
How love in silence becomes reprimand
But the may I feel about you is beyond words
Oh give me the words
Give me the words
That tell me nothing
Oh give me the words
Give me the words
That tell me everything

In a manner of speaking Semantiks won't do
In this life that we live we only make do
And the way that we feel might have to be sacrificed

So in a manner of speaking
I just want to say
That like you I should find a way
To tell you everything
By saying nothing
Oh give me the words
Give me the words
That tell me nothing
Oh give me the words
Give me the words
Give me the words
Give me the words
Give me the words"

"In a Manner of Speaking" - Nouvelle Vague, original de Tuxedomoon (a tocar ali ao lado)


fivela


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Eu não lhe queria fazer mal. A sério, não queria. Mas sabem quando se atinge o ponto de saturação, aquele instante em que o leite começa a ferver e, mesmo que se baixe o lume, já nada a fazer? Quando ficamos com um formigueiro nas mãos, no corpo, e temos de nos levantar e endireitar o quadro na parede, fechar a torneira que pinga, pinga, pinga sem parar, apanhar o pedaço de cotão que nos fita há horas num canto sem desaparecer. Quando um amigo repente constantemente a mesma palavra errada e não aguentamos, e à quinta ou sexta vez que o faz, temos de o corrigir.
Desta vez foi o barulho. Aquele irritante barulho da fivela da mala a bater na prateleira de vidro da carruagem. Um tilintar metálico, que cresceu nos meus ouvidos e se tornou estridente no meu cérebro. Fechei os olhos mas o ruído estava ali e não havia forma de desaparecer. Comecei a ficar inquieto. Ainda faltava uma hora para chegar ao meu destino. O pouca-terra-pouca-terra já me tinha embalado, mas tinia agora este maldito despertador acima de mim. E mais ninguém parecei incomodado senão eu. O dono da mala e da fivela metálica estava a dormir profundamente, o filho da mãe. E eu aqui, com uma dor a penetrar mais fundo, cada vez mais fundo.
Foi por isso que quando o tipo acordou e se dirigiu à casa-de-banho, o segui. E foi por isso que tirei um lápis bem afiado do meu estojo. Foi por isso que, quando o encontrei à saída, lhe espetei o lápis na garganta sem hesitar. Ainda tentou dizer qualquer coisa, mas não conseguiu. O sangue abafou qualquer esgar que quisesse ter sobrevivido. E eu voltei para o meu lugar, onde dei um empurrão à mala e a puta da fivela deixou de tilintar.




foto de raio de sol

Acima do meu sangue, por entre as nuvens de pó
No labirinto dos desejos, vou, desalinhada.
Canto hinos de loucura, um poema só,
Que não há sentido numa casa abandonada.
As paredes de sombras feitas calam segredos
Presas num passado antes evocado.
Serei a trova dos dias negros
A eterna dor de um coração queimado.
Disparam as vozes, ficam os ecos
Na escuridão dos pecados que se expiam.
Antes que a carne sangre por esses becos
Levanto a dor, sossego os sorrisos que se adiam.


doce matinal


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- Bom dia! Já tinha pensado em si...
- Ai sim? Então porquê?
- Nunca mais a vi por aqui. Tem andado desaparecida.
- Às vezes passo por cá, mas também não o tenho visto.
- Pois, andamos desencontrados. Olhe, mas gosto muito de a ver. E então, o que vai ser?
- É um café, por favor.
- Então e o meu coração, não vai levar?
- Não, hoje não. Mas levo um pastel de nata, se tiver. Pouco queimado, pode ser?




foto de raio de sol

Vou-te fotografar, o tema é a solidão, mas e a profundidade de campo, já sabes trabalhar com a profundidade de campo, não sejas parva, como se fosse possível não haver profundidade numa mente solitária, habituada a rebuscar cada resquício de memória, não é essa profundidade, é a outra, a grande cidade já é solitária por si só, para que precisas de mim, fica quieta, espera, mas está frio, demasiado frio, porque não posso fingir a solidão ao sol, mas quem disse para fingires, não sejas má, vá, tira lá a fotografia, o rio continua a correr, a fugir sem destino, queres que olhe para lá, para o destino que não se conhece, não, não faças nada, pensa em ti, apenas, mas e se eu não quiser pensar em mim, não vale a pena pensar em mim, já está, vamos ver como fica, deve estar uma bodega, olha, e se calhar até fiz o panning com a gaivota, não queres lá ver, aponta aí diafragma 8,5 velocidade 125, devia ter usado uma mais rápida, que se lixe, onde vamos agora, queres lanchar, vamos, subimos pela Bica, não vamos pela Sé, mau, já estou farta de andar a pé, desculpa, não és tu que queres fazer fotografias, então temos de andar a pé, a ver as almas por essas ruas fora, os gatos nas janelas e as mulheres de roupa pendurada nos estendais, no final terás boas imagens, pois, que a solidão essa já é certa, vamos beber um chá e colorir as mãos neste dia frio, vamos ao Pois, vamos sim, já não há luz, guarda a máquina.




foto de raio de sol

Havia loucos atrás de cada esquina e pensamentos pendurados nos cartazes espalhados pelas paredes. Eram vidas ausentes as que percorria sem medos, sem pudores. Disparava olhares a cada pedaço de dor que passava, com um sorriso encalhado debaixo do braço. Seguia pela rua, baloiçando ao som da melodia dos dias frios. Misturava-se no cheiro a cansaço do asfalto pisado e escondia dentro do casaco de lã as formas de um corpo indignado. Passava, assim, os dias. Entretida com os sons de uma cidade perdida. Com as cores de uma explosão sem sentido. Também ela era louca.



Não se calavam, aqueles dois, no banco ao lado. Conversas e risos estridentes, que não o deixavam descansar. Como tinha os olhos pesados! As noites maltratavam-lhe a vontade de dormir. E agora, acomodado num banco de comboio, largava os pensamentos pelo corredor e só queria dormir.

- Chefe, dê-me um bilhete para Santa Apolónia. Acho que me perdi por lá e quero reencontrar-me.

O vendedor de bilhetes olhou para aquela alma penada, de mala a tiracolo e cabelo cortado à navalha, e pensou que havia dias em que também a ele lhe apetecia sair dali. Encontrar-se. Em Santa Apolónia ou em outra qualquer estação. Perdido em átrios de estações que só conhecia em sonhos de olhos abertos, fez rodar a plataforma giratória onde depositara o bilhete e algumas moedas de troco. Nem o viu sair pela porta. Tal como não o vira entrar, trazido pela chuva fria e pelo gelo da manhã.

A verdade é que não se lembrava de ter entrado no comboio. Levou a mão ao bolso da gabardina e os dedos agarraram o bilhete amarrotado, comprado minutos antes. Lugar 95. Carruagem 21. Não fumador. Mas que diabo... olhou para cima, para confirmar o lugar onde estava sentado. Não sabia como tinha ali chegado. Tão pouco se era a carruagem que o bilhete anunciava. Mas era o 95. Sem perceber como, tudo fazia sentido. Excepto a presença dele. O corpo atirado no banco, sem propósito. À sua frente, a mala estava em cima da plataforma presa no banco da frente. Não lhe deu muita importância, pois a atenção foi arrastada para a janela. Pôs as mãos em concha no vidro e tentou perceber onde estava. Mas todas as paisagens se assemelham a riscos quando não sabemos o que queremos ver. Recostou-se e fechou os olhos. Queria dormir para esquecer tudo aquilo de que não se lembrava.
Acordou sobressaltado. Uma voz anunciava que, devido às obras na linha, o comboio ficaria parado durante cerca de 15 minutos. Começou a suar. Mas assim não vou chegar a tempo. A tempo de quê? Pensava. Não sabia. Mas era necessário que chegasse a horas ao destino. Se havia alguém à sua espera, não o sabia. Mas e se houvesse? E se, essa pessoa, cansada de esperar, se fosse embora? Saiu disparado do banco, tropeçou nas pernas que lhe barravam o caminho e, cambaleante, seguiu pelo corredor, encontrando bancos e braços e pernas pela frente. Suava. A demora queimava-lhe os passos e a cada passo que dava esquecia-se do que ficava para trás.
Já não sabia porque se tinha levantado ou em que direcção seguia. Quendo deitou abaixo um saco que ocupava parte da passagem pediu desculpa ao rosto esbatido à sua esquerda. Desculpa, mas eu de facto não viajo neste comboio, não reconheço a paisagem, por isso, este comboio não pode ser o meu. Só procuro a saída. A boca esbatida do rosto anónimo ia-lhe responder qualquer coisa, mas ele não esperou. Saltou por cima do saco e das irrelevâncias espalhadas e foi em direcção à casa-de-banho. Gritou baixinho, numa fúria contida, quando viu que estava ocupada. Abanou a porta com força, fez de conta que não via o sinal e forçou o manípulo, contando que a fechadura desse de si. O que queria dali, afinal? O facto de não poder entrar dava-lhe ainda mais vontade o fazer. Pensou em dar um pontapé na porta, mas antes que o pé acompanhasse o pensamento, ouviu um clique. Suspirou de alívio. O comboio continuava parado e ele ansiava descobrir naquele cubículo algo mais que a monotonia devolvida pelas janelas. Os seus próprios medos.

- Olá, então por aqui? Pois é, sabe, quando lhe vendi o bilhete e o vi a olhar para parte nenhuma, decidi vir também. Parece surpreendido. Então porquê? Olhe, achei que já era tempo de vir conhecer outras estações. Ali fechado não se vê mundo, o mundo é que passa por nós e não pára. Mas não se preocupe. A bilheteira fechou mas alguém a irá abrir, pois claro. Enquanto houver assim homens como você, que aparecem vindos sabe-se lá donde, com destino incerto, haverá sempre alguém para lhe vender o bilhete. Acredite que sim. E agora vou-me sentar e gozar a viagem. É a primeira vez que ando de comboio, sabe? Bom, a primeira não será, mas é a primeira vez que faço uma viagem assim comprida. É uma bela máquina, sim senhor. Ora, mas passe lá amigo, passe. Parece que está aflito. Eu vou ali para o meu lugar ver a paisagem. Isto está parado, mas daqui a nada já anda. E à janela é como se fosse um filme, sempre em movimento, não acha? Olhe, se depois quiser conversar um bocado eu estou mesmo atrás de si. Não se acanhe, que isto a vida são dois dias. Olha... parece que já anda. Vamos chegar atrasados, mas não muito, só uns cinco ou dez minutos. Isso não é nada comparado com uma vida. Tem alguém à sua espera?

Sim, havia alguém à sua espera. Algures. Mas não naquela noite. Não naquela linha. Entrou e fechou o trinco. De olhos cerrados deixou-se embalar pela vibração do comboio. Lá fora, o homem da bilheteira sorria.




foto de raio de sol

- És mesmo tu?
- Sim, sou eu...
- Julgava-te perdido para sempre. Quer dizer... Pensei que não te voltava a encontrar.
- E estás feliz por me ver?
- Não sei se estou feliz.. É possível sentir felicidade ao rever os nossos próprios demónios?
- Sou, portanto um demónio para ti.
- Não és um demónio. És...
- Um fantasma?
- Sabes aquela dose de tormento interior, aquela angústia sem sentido, aquela insanidade que por vezes toma conta dos meus dedos, das palavras que escrevo?
- Sim?...
- És tu. Gosto que de vez em quando venhas visitar-me.
- E não tens medo de mim?
- Às vezes tenho. Penso nas cidades negras, nas ruas sujas, nas almas decrépitas encostadas às esquinas, nas mulheres fáceis e nos homens bêbados de si, nos vícios do corpo e nos enganos dos passos. E penso que é este o teu mundo. Que também é o meu, de certa forma. O sangue pode ser doce, não pode?
- Falas de uma crueldade que são as sombras onde vivo. A doçura.. Hum... Talvez exista, de um modo estranho, distorcido. Penso que te compreendo.
- Não é fácil, eu sei. A urbano-depressão tem muito pouco de dias amenos. Mas eu gosto de encontrar refúgios.
- Como umas águas-furtadas, onde se esconde um assassino?
- Também. Mas até os assassinos têm as suas dúvidas existenciais. E criam poemas nos arabescos da sua demência.
- Achas que eu sou demente?
- Claro que sim. Quem não é?
- Ah, se soubesses as coisas que vejo pelas longas horas da noite. Já vivi tanto sem sair daqui. São visões que provocam febres infernais, acredita...
- Continua a falar-me desse teu mundo doentio. Ainda que te escondas na parede, eu sei das tuas visões. Deixa-me escrever sobre elas.
- Tu não queres viver num mundo onde a luz acaba e as saídas se perdem. Onde não há certeza dos caminhos.
- Mas porque não, se esse é já o mundo em que vivo?
- Não há nada para além da luz.
- Pois não, mas a escuridão também pode ser confortável. Habituamo-nos a tudo.
- Tens razão. Até à dor. Deus, e como me dói estar aqui a falar contigo.
- Deus?! Acreditas em Deus? Ou numa “força” do género?
- Não. Foi uma “força” de expressão...
- Às vezes sinto que devia creditar em Deus. Ou em qualquer coisa. É absurdamente marginal não acreditarmos em nada.
- Acredita-se sempre em alguma coisa. Nem sempre nas coisas certas...
- Oh, mas o que é certo e o que é errado? O que é bom e o que é mau? Seremos todos sempre lobos ou sempre cordeiros? Não trocamos as peles de vez em quando?
- Cada vez mais. Cada vez mais. E a carne é podre.
- Não queres dizer que a carne é fraca?
- Não. Podre mesmo. Em decomposição. Estamos vivos, mas os bichos tomam conta de nós em cada momento de suposta consciência. E como é incrivelmente redentor sermos devorados vivos...
- Redentor?
- Sim, apazigua os demónios.
- Pois, os demónios.
- Arrefece a carne.
- Mas há sempre vozes a queimar a pele. A cauterizar as intenções.
- E nada como o suave aroma da carne queimada, a cheirar a pecado.
- E o que é o pecado, afinal?
- Talvez nada seja pecado enquanto houver uma saída.
- Por falar em saída, que tal é esse lado? Assim tão mau?
- Não te iludas pela parede, Alice. Aqui só há o desespero dos dias.
- Posso perguntar-te uma coisa?
- Força.
- Porque é que me chamaste Alice?