apeadeiro


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Queres que eu me lembres de ti?(?)



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Não se calavam, aqueles dois, no banco ao lado. Conversas e risos estridentes, que não o deixavam descansar. Como tinha os olhos pesados! As noites maltratavam-lhe a vontade de dormir. E agora, acomodado num banco de comboio, largava os pensamentos pelo corredor e só queria dormir.

- Chefe, dê-me um bilhete para Santa Apolónia. Acho que me perdi por lá e quero reencontrar-me.

O vendedor de bilhetes olhou para aquela alma penada, de mala a tiracolo e cabelo cortado à navalha, e pensou que havia dias em que também a ele lhe apetecia sair dali. Encontrar-se. Em Santa Apolónia ou em outra qualquer estação. Perdido em átrios de estações que só conhecia em sonhos de olhos abertos, fez rodar a plataforma giratória onde depositara o bilhete e algumas moedas de troco. Nem o viu sair pela porta. Tal como não o vira entrar, trazido pela chuva fria e pelo gelo da manhã.

A verdade é que não se lembrava de ter entrado no comboio. Levou a mão ao bolso da gabardina e os dedos agarraram o bilhete amarrotado, comprado minutos antes. Lugar 95. Carruagem 21. Não fumador. Mas que diabo... olhou para cima, para confirmar o lugar onde estava sentado. Não sabia como tinha ali chegado. Tão pouco se era a carruagem que o bilhete anunciava. Mas era o 95. Sem perceber como, tudo fazia sentido. Excepto a presença dele. O corpo atirado no banco, sem propósito. À sua frente, a mala estava em cima da plataforma presa no banco da frente. Não lhe deu muita importância, pois a atenção foi arrastada para a janela. Pôs as mãos em concha no vidro e tentou perceber onde estava. Mas todas as paisagens se assemelham a riscos quando não sabemos o que queremos ver. Recostou-se e fechou os olhos. Queria dormir para esquecer tudo aquilo de que não se lembrava.
Acordou sobressaltado. Uma voz anunciava que, devido às obras na linha, o comboio ficaria parado durante cerca de 15 minutos. Começou a suar. Mas assim não vou chegar a tempo. A tempo de quê? Pensava. Não sabia. Mas era necessário que chegasse a horas ao destino. Se havia alguém à sua espera, não o sabia. Mas e se houvesse? E se, essa pessoa, cansada de esperar, se fosse embora? Saiu disparado do banco, tropeçou nas pernas que lhe barravam o caminho e, cambaleante, seguiu pelo corredor, encontrando bancos e braços e pernas pela frente. Suava. A demora queimava-lhe os passos e a cada passo que dava esquecia-se do que ficava para trás.
Já não sabia porque se tinha levantado ou em que direcção seguia. Quendo deitou abaixo um saco que ocupava parte da passagem pediu desculpa ao rosto esbatido à sua esquerda. Desculpa, mas eu de facto não viajo neste comboio, não reconheço a paisagem, por isso, este comboio não pode ser o meu. Só procuro a saída. A boca esbatida do rosto anónimo ia-lhe responder qualquer coisa, mas ele não esperou. Saltou por cima do saco e das irrelevâncias espalhadas e foi em direcção à casa-de-banho. Gritou baixinho, numa fúria contida, quando viu que estava ocupada. Abanou a porta com força, fez de conta que não via o sinal e forçou o manípulo, contando que a fechadura desse de si. O que queria dali, afinal? O facto de não poder entrar dava-lhe ainda mais vontade o fazer. Pensou em dar um pontapé na porta, mas antes que o pé acompanhasse o pensamento, ouviu um clique. Suspirou de alívio. O comboio continuava parado e ele ansiava descobrir naquele cubículo algo mais que a monotonia devolvida pelas janelas. Os seus próprios medos.

- Olá, então por aqui? Pois é, sabe, quando lhe vendi o bilhete e o vi a olhar para parte nenhuma, decidi vir também. Parece surpreendido. Então porquê? Olhe, achei que já era tempo de vir conhecer outras estações. Ali fechado não se vê mundo, o mundo é que passa por nós e não pára. Mas não se preocupe. A bilheteira fechou mas alguém a irá abrir, pois claro. Enquanto houver assim homens como você, que aparecem vindos sabe-se lá donde, com destino incerto, haverá sempre alguém para lhe vender o bilhete. Acredite que sim. E agora vou-me sentar e gozar a viagem. É a primeira vez que ando de comboio, sabe? Bom, a primeira não será, mas é a primeira vez que faço uma viagem assim comprida. É uma bela máquina, sim senhor. Ora, mas passe lá amigo, passe. Parece que está aflito. Eu vou ali para o meu lugar ver a paisagem. Isto está parado, mas daqui a nada já anda. E à janela é como se fosse um filme, sempre em movimento, não acha? Olhe, se depois quiser conversar um bocado eu estou mesmo atrás de si. Não se acanhe, que isto a vida são dois dias. Olha... parece que já anda. Vamos chegar atrasados, mas não muito, só uns cinco ou dez minutos. Isso não é nada comparado com uma vida. Tem alguém à sua espera?

Sim, havia alguém à sua espera. Algures. Mas não naquela noite. Não naquela linha. Entrou e fechou o trinco. De olhos cerrados deixou-se embalar pela vibração do comboio. Lá fora, o homem da bilheteira sorria.


2 reacções a “apeadeiro”

  1. Anonymous Anónimo 

    Que bonito amiga...

    Lembra-me as minhas viagens de comboio :-)

  2. Anonymous Anónimo 

    Há sempre alguém à nossa espera. ;)

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