conversa de bairro


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Queres que eu me lembres de ti?(?)



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foto de raio de sol

- És mesmo tu?
- Sim, sou eu...
- Julgava-te perdido para sempre. Quer dizer... Pensei que não te voltava a encontrar.
- E estás feliz por me ver?
- Não sei se estou feliz.. É possível sentir felicidade ao rever os nossos próprios demónios?
- Sou, portanto um demónio para ti.
- Não és um demónio. És...
- Um fantasma?
- Sabes aquela dose de tormento interior, aquela angústia sem sentido, aquela insanidade que por vezes toma conta dos meus dedos, das palavras que escrevo?
- Sim?...
- És tu. Gosto que de vez em quando venhas visitar-me.
- E não tens medo de mim?
- Às vezes tenho. Penso nas cidades negras, nas ruas sujas, nas almas decrépitas encostadas às esquinas, nas mulheres fáceis e nos homens bêbados de si, nos vícios do corpo e nos enganos dos passos. E penso que é este o teu mundo. Que também é o meu, de certa forma. O sangue pode ser doce, não pode?
- Falas de uma crueldade que são as sombras onde vivo. A doçura.. Hum... Talvez exista, de um modo estranho, distorcido. Penso que te compreendo.
- Não é fácil, eu sei. A urbano-depressão tem muito pouco de dias amenos. Mas eu gosto de encontrar refúgios.
- Como umas águas-furtadas, onde se esconde um assassino?
- Também. Mas até os assassinos têm as suas dúvidas existenciais. E criam poemas nos arabescos da sua demência.
- Achas que eu sou demente?
- Claro que sim. Quem não é?
- Ah, se soubesses as coisas que vejo pelas longas horas da noite. Já vivi tanto sem sair daqui. São visões que provocam febres infernais, acredita...
- Continua a falar-me desse teu mundo doentio. Ainda que te escondas na parede, eu sei das tuas visões. Deixa-me escrever sobre elas.
- Tu não queres viver num mundo onde a luz acaba e as saídas se perdem. Onde não há certeza dos caminhos.
- Mas porque não, se esse é já o mundo em que vivo?
- Não há nada para além da luz.
- Pois não, mas a escuridão também pode ser confortável. Habituamo-nos a tudo.
- Tens razão. Até à dor. Deus, e como me dói estar aqui a falar contigo.
- Deus?! Acreditas em Deus? Ou numa “força” do género?
- Não. Foi uma “força” de expressão...
- Às vezes sinto que devia creditar em Deus. Ou em qualquer coisa. É absurdamente marginal não acreditarmos em nada.
- Acredita-se sempre em alguma coisa. Nem sempre nas coisas certas...
- Oh, mas o que é certo e o que é errado? O que é bom e o que é mau? Seremos todos sempre lobos ou sempre cordeiros? Não trocamos as peles de vez em quando?
- Cada vez mais. Cada vez mais. E a carne é podre.
- Não queres dizer que a carne é fraca?
- Não. Podre mesmo. Em decomposição. Estamos vivos, mas os bichos tomam conta de nós em cada momento de suposta consciência. E como é incrivelmente redentor sermos devorados vivos...
- Redentor?
- Sim, apazigua os demónios.
- Pois, os demónios.
- Arrefece a carne.
- Mas há sempre vozes a queimar a pele. A cauterizar as intenções.
- E nada como o suave aroma da carne queimada, a cheirar a pecado.
- E o que é o pecado, afinal?
- Talvez nada seja pecado enquanto houver uma saída.
- Por falar em saída, que tal é esse lado? Assim tão mau?
- Não te iludas pela parede, Alice. Aqui só há o desespero dos dias.
- Posso perguntar-te uma coisa?
- Força.
- Porque é que me chamaste Alice?


5 reacções a “conversa de bairro”

  1. Anonymous Anónimo 

    :) Gostei muito.

  2. Anonymous Anónimo 

    Estranha esta Alice, parece que procura algo, mas que também sabe muito sobre as coisas...vou aguardar pacientemente pela próxima visita dela.

  3. Anonymous Anónimo 

    bairros é o meu meio... compra hoje o Público (sexta-feira) e vê a revista que inclui.

    abraço

  4. Anonymous Anónimo 

    Como um ladrão arrependido que se habituou a chamar seu ao que a outros pertenceu ou pertence, e que devolve já danificado o que intacto roubou, imagino que poderia ter sido eu a escrever este texto que aqui te devolvo:

    "Julgava-te perdido para sempre. Pensei que não te voltava a encontrar. Não sei se estou feliz. É possível sentir felicidade ao rever os nossos próprios demónios? Sabes aquela dose de tormento interior, aquela angústia sem sentido, aquela insanidade que por vezes toma conta dos meus dedos, das palavras que escrevo? És tu. Gosto que de vez em quando venhas visitar-me. Penso nas cidades negras, nas ruas sujas, nas almas decrépitas encostadas às esquinas, nas mulheres fáceis e nos homens bêbados de si, nos vícios do corpo e nos enganos dos passos. E penso que é este o teu mundo. Que também é o meu, de certa forma. Mas o sangue pode ser doce, não pode? E a escuridão também pode ser confortável. Habituamo-nos a tudo. Às vezes sinto que devia acreditar em Deus. Ou em qualquer coisa. É absurdamente marginal não acreditarmos em nada. Mas há sempre vozes a queimar a pele. A cauterizar as intenções. Que tal é esse lado do espelho?"

    *

    (…)
    Seremos loucos
    ou apenas humanos?
    Algo seremos,
    de forma passageira,
    mas cravados nas entranhas
    dos momentos solitários.
    Pairamos, na confusão do ser.

    (dias entrelaçados, 4.8.05 :: broa quente)

  5. Anonymous Anónimo 

    katraponga: obrigada :)

    rspiff: aguarda, sim. :)

    naked lunch: vi o público, mas não sei a que te estavas a referir... :( Olha, adivinha o que vou hoje ver na Cinemateca? Pista: é do Cronenberg... ;)

    jctp: fica o dilema... É verdadeiramente ladrão quem pega em algo e o transforma em qualquer coisa melhor ou mais plena de significado? As tuas/minhas palavras são poderosas. Gosto que tenhas resgatado este poema.

palavras soltas

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