Foi então que passou dissolvente na pele e aplicou outra camada brilhante. Cor de sangue.





Este corredor não tem 50 metros. Estas letras não são as minhas. Os meus pés não me levam onde quero. As minhas mãos não estão frias. A vontade não está ausente. O correr dos dias não é ameno. O tempo não chega para todas as palavras. Este corredor não tem fim. Magritte não era louco.





A vida sou eu, numa tarde de chuva. A vida é subir a Rua do Carmo, em direcção ao Chiado. A vida é um chapéu enterrado na cabeça, para não molhar o cabelo, e uma gabardine e um cachecol. A vida é ouvir "You Can Have It All" dos Kaiser Chiefs ao longo dos meus passos. A vida é o meu anel azul na mão direita. A vida é estar só, e sentir-me bem assim. A vida são gotas de chuva nos meus ténis velhos e vermelhos. A vida é uma música à procura da melodia. A vida tem unhas lilases, a combinar com a alegria do cachecol. A vida é fria, mas eu não me importo. Pois há cores. Sempre.


I'll tell you what it's going to be like
I saw you on the bus and that was that
There's more to this than passing by
There's more to this than meets the eye
I'll tell you what it's going to be like
I saw you on the bus, I saw your shoes
They fell apart some time ago
I'll buy some more in five years

It's not my fault, I don't care
I don't regret a single thing
It's not my fault, I don't care
I don't regret a single thing

I'll tell you what its going to feel like
You lost a limb and you can feel it
If you leave, at night, not by my side
Cause I'm not there to hold you too tight

Leave, I'll tell you what its going to be like
No you can never hold my hand
If only they can know or understand
That you and me are now together

It's not my fault, I don't care
I don't regret a single thing
It's not my fault, I don't care
I don't regret a single thing

Oh oh, you can have it all, if that's alright
Oh I will give it all to you, cause you never lied before
And you can have it all, if that's alright
And you can have it all, if it's alright, oh oh


You Can Have It All - Kaiser Chiefs



Café. Black, with sugar. Quente. A escaldar, enquanto o frio lá fora faz pensar em cachecóis quentes, meias de lã e castanhas a crepitar. O fumo entra pelas narinas e saboreio o líquido quente, que aviva as emoções cá dentro. Vem-me à memória o anúncio do Nescafé (seria Nescafé?...) I can see clearly now, the rain is gone… Gone are the dark clouds that had me blind, it’s gonna be a bright, bright, sun-shiny day. Vai, com certeza. Com sabor a café.



Verde. Branco. Azul. Cores pairam acima da minha consciência. Sopros de vida emanam das paredes. Deixo-me levar no azul de sonhos e rodopios. Ouve a música que há nesta cama. Escorre a preguiça pelos corpos, exulta o desejo pelos poros. É dia lá fora. O sol canta para mim. A vida é poliédrica.



A fotografia é uma vista da cidade de Coimbra, datada de 1900 e vinte e qualquer coisa. Trouxe-a de casa do meu avô, tal como a máquina de costura mais abaixo, que pertencia à minha avó. O poster é o "chat noir" que veio de Paris enrolado e preso à mochila. O laranja das paredes é o meu combate diário à monotonia dos dias agrestes e tempestuosos. Nesta fotografia, o laranja das paredes é a única emoção que não está morta.



Tenho paredes de banda desenhada, tenho cores e bonecada. Silhuetas mal amanhadas, heróis e heroínas no corpo traçadas. Pinto cores no meu caminho, teço tramas e intrigas. À noite, movem-se as sombras por entre os tubos de tinta, tremem as paredes, falam-me vozes antigas. Boooooommmm!!!! Explode o céu em mil cores, desfazem-se os amores, caem os corpos aos pés, por entre ventos e marés. Tudo isto numa parede branca e fria, tingida pelo calor da tela de fantasia.





Não há nada mais cheio de calor que um gato grande e gordo, que se atira ao chão e faz rooommmm e puuuurrrrr mal se abre a porta de casa. Não há nada mais mais doce que um gato de patas e nariz cor de rosa enroscado nas pernas numa noite de frio intenso. Não há nada mais quentinho que um gato a furar pelo edredon, porque nos sente só, e porque busca aquela curva exacta da perna onde sabe tão bem ficar enrolado. Não há nada mais inesperado que um gato apaixonado por água, que delira por torneiras a pingar e não resiste a uma banheira acabada de usar. Não há nada mais delirante que um gato que atravessa a cozinha, a sala e o quarto aos pulos em menos de cinco segundos. Não há nada mais pacato que um gato de barriga branca e redonda a dormir ao sol, de patas esticadas e sorriso nos lábios. Não há nada mais impressionante que um gato a ressonar e a ter sonhos turbulentos, quem sabe, com saborosos ratos. Não há nada mais ridículo que acordar com uma dor na bexiga e descobrir que se tem um gato de 6,5 kg a dormir em cima da barriga. Não há nada mais desesperado que um gato a ver-nos abrir uma lata de atum. Não há nada mais estranho que um gato de tendências suicidas, que se aventura nos parapeitos da janela com o olhar postos nos pássaros lá fora. Não há nada como o meu gato. Grande e gordo, comme il faut!


texto originalmente publicado aqui, com o peso do bicho já devidamente actualizado!



Às vezes o sangue serve para mostrar que estamos vivos. Um pouco de raiva, em doses moderadas, nunca fez mal a ninguém. Desde que, volta e meia, a temperemos com doçura. (para r.b.)





Mesmo na amargura dos limoeiros há ternuras escondidas. Palavras que ficam perdidas. Sorrisos que, guardados, trazem rostos outrora sublimados. No verde das folhas vejo as pinceladas dos meus dias, os temores, as dores, mas ainda as cores das mãos que me arrastam para o azul do céu. Porque azuis serão os meus passos, mesmo em dias de tempestade. Mesmo em dias de ansiedade. Mesmo que nos limoeiros sobreviva o travo amargo da saudade.



Acordou a custo e foi tomar banho. Uns bigodes curiosos miavam atrás da porta. A água quente purificava a pele, o vapor queimava os pensamentos. Enrolada na toalha, fez café e vestiu-se, de seguida, os pés nus sobre as tábuas do chão, o dia finalmente a começar. Com uma chávena de café na mão, olhou os limoeiros e deixou o sol entrar. A roupa no estendal sorria em direcção ao vento. Durante longos minutos a vida radiante fez-lhe cócegas nos cantos da boca. Quando vestiu o casaco e deu uns jeitos nas ondas do cabelo, a sua própria imagem reflectida duplamente em dois espelhos fê-la parar e olhar-se. Era bonita. Era mesmo bonita. E saiu.



Cheira a broa quente com manteiga nesta casa. Há pão acabado de cozer. Há dedos e agulhas, pontos e pespontos, alinhavos feitos e bainhas para terminar. Há retalhos pelo chão, uma manta ainda na intenção. Há uma vela que alumia o olhar cansado e o dedal protector, há um pedalar constante no vazio do pensamento. Há uma viagem, um amor maior fugitivo, ambos encerrados no claustro de uma moldura. Neste canto remendam-se as almas.



Havia palavras e recordações, no instante em que o açúcar se dissolvia no líquido quente. Cheirava a hortelã e anis, um odor diluído nos pensamentos de uma amizade. Os poemas soltos eram recurso certo para a quietude do corpo e da alma. Iluminados pela lamparina antiga, os olhos de menina, presos à imensidão das emoções, falavam-me de dias felizes.





Viajo até ao fim da linha
Onde as palavras são rasgadas
Atiradas à parede. Onde a vontade definha.
Vou até ao fim, com as mãos cheias de nadas.
A meio fica o poema, ficam os passos
Que o sentido é mais profundo, mais doce
Ao sonhar com os teus abraços.
Pela margem do rio vou, a desejar que o rio fosse
O sublime solvente da redenção.
Pois que no fim da linha, na verdade
Apenas lágrimas e sombras de então,
Das noites em que devorei a saudade.
Não vou até ao fim da linha. Não nestas águas.
Será assim que te digo
Que na outra margem das mágoas
Resta o olhar da esperança, do desejo de rimar contigo.





Dançavam presos um no outro, olhos nos olhos, o corpo no corpo, o suor a escorrer pelas peles. Moviam-se num só ritmo, ao longo da chama que ardia por eles adentro. Na cama, dançavam sem música, num jogo cruel de vozes soltas e poemas desejados, de mãos desencontradas e bocas entrelaçadas.

Perdi-me em ti, choro nas linhas das tuas ancas. Fecho os olhos e sabes-me aos dias que não voltam, às noites de Verão, a gelado com pastilha e aos risos da infância.

Toco-te e a música em mim começa. Procuro o ondular do teu corpo e misturo-me na voz que canta dentro de ti. Tens ar de menino perdido quando as minhas pernas te abraçam.

E dançavam. As lágrimas que caíam no chão marcavam o ritmo. Mas o sorriso de plenitude que ocultavam trazia, de mansinho, a melodia.

“And look at the two of us in sympathy
And sometimes ecstasy
Words mean so little, and money less
When you're lying next to me

But look at my hopes, look at my dreams
The currency we've spent
I love you, oh, you pay my rent
I love you, you pay my rent
Ooh, I love you, you pay my rent”*


*"Rent", Pet Shop Boys


de arrasto


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Já não a podia ouvir. Acordei sobressaltado com um barulho que me pareceu de móveis a serem arrastados. O ruído foi de tal forma intrusivo que doeu p’ra caralho, como se me começassem a arrancar o escalpe. Como se de repente me tivessem perfurado o crânio com um berbequim e, não contentes com o estrago, tivessem andado à roda com a broca, quem sabe, para meter cá dentro uma bucha e pendurar um lindo quadro. Mas era lá em cima que andavam a arrastar móveis, às duas da manhã! Outra vez! Já não havia paciência para aquele arrastar de madeiras, de metais, de pedras, de corpos, fosse lá o que fosse. Aquele arrastar pelo chão como se as cadeiras estivessem moribundas, como se a mesa quisesse cavar com toda a força um sulco nas tábuas, como se todo o peso daquela casa estivesse preso àquele arrastar.
Tentei voltar a dormir, mas de cada vez que fechava os olhos, aquela besta voltava à carga. É que já não havia paciência! Ter-se-ia lembrado, àquela hora, que afinal não gostava da estúpida disposição dos móveis? Dos estúpidos móveis com estúpidos naperons e estúpidos puxadores dourados? Do estúpido tapete florido, por baixo de uma estúpida mesa onde sorria uma estúpida fruteira com estúpidos frutos de plástico?
Mais estúpido era eu, a ouvir aquele arranhar por cima da minha cabeça. Aqueles lampejos de trovoada que só não o eram porque, na escuridão, rebrilhavam antes os meus olhos irados, alimentados pela dor no meu cérebro. Já não podia mais. Apetecia-me espetar-lhe um murro na cabeça, dar-lhe um pontapé, empurrar-lhe a cristaleira para cima, arrastá-la pelo cabelo por toda a casa, enrolá-la no tapete e mandá-la pela escada abaixo. Tudo, menos ouvir aquele arrastar de móveis às duas da manhã, a ribombar por cima dos meus olhos, alojado nas minhas têmporas.
Ri-me de mim próprio, porque de repente vi o meu reflexo nos “Crimes Exemplares” de Max Aub, e considerei toda a cena absurda. Suspirei e revi a situação ridícula que estava a acontecer. Não obstante, fui lá acima, arrombei a porta e atirei a velha pela janela.


we're all rats


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foto retirada de banksy, via festim nu

Porque sou um falhado, porque sou um inútil na sociedade, porque tenho ganas de ser melhor e não consigo, porque às vezes quero bater com a cabeça com toda a força nas paredes, porque gosto de fazer mal a mim próprio, porque me afogo no meu próprio sangue e no meu vómito, porque não entendo o que digo quando falo, porque tenho fantasmas dentro da minha estúpida cabeça, porque o meu corpo quer fazer coisas que não deve, porque não confio em ninguém, nem em mim, porque a língua se enrola num turbilhão de ideias e o meu sangue não sai cá para fora, porque quero dormir sem o pesadelo do amanhã, porque sou um rato de esgoto e as pessoas desviam o olhar à minha passagem, porque cheiro mal da boca, porque me confundo na solidão de cada autómato desta merda de cidade, porque estou aqui e ninguém me vê, porque tenho de ir às putas para conquistar um bocado de carinho, porque está sol e eu estou na sombra, porque sou fruto da minha própria imaginação, porque passo os dias a desenhar rabiscos num pedaço de papel, porque as horas passam arrastadas e começo a ter fome, porque as frieiras das mãos impedem-me de dizer adeus, porque gostava de estoirar os miolos e ficar a ver-me de língua de fora e olhos abertos, com baba a escorrer pela boca, porque haveria cães a cheirar-me e a aliviar-se num corpo inerte, porque seria atirado para o carro do lixo, porque penso coisas que não lembra ao diabo, porque à noite, na cama, fecho os olhos e ando para trás, e não vejo uma razão para no dia seguinte fazer um percurso diferente, porque me sento e me dói a cabeça, porque não sei a música que todos cantarolam, porque tenho uma vontade monstruosa de gritar na cara de alguém, atirar-lhe com cuspo e continuar a cuspir em quem me incomodar, porque não consigo parar de escrever, porque não digo nada que faça sentido, porque o café sabe a podre, porque é o sabor de todos os dias, porque eu sou todos e não sou ninguém, porque sou um inútil na sociedade, porque sou um falhado.


caderno


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Não penses que não te vejo. Estás para aí a escrever no teu caderninho, pensas que ninguém se apercebe dos teus olhares invasores, mas eu topei-te à distância. Que ideia a tua, sentado num eléctrico a esta hora, a escrever num caderno. Deves pensar que és o único, não? Não fosse cá por coisas, tirava o meu bloco da mala e abanava-o à frente do teu nariz. Vês? Vês isto? São pessoas, são histórias, são suspiros e espíritos errantes, pedras de calçada e ritmos incansáveis de uma cidade cruel, são desejos e ambições quebradas, são letras torturadas e almas amaldiçoadas. Nem te atrevas a escrever sobre mim... Este é o meu território. E hoje estás com azar, isto vai quase vazio. Há pouca amargura no ar. Isso, fecha o caderno. Mas não te atrevas a examinar-me, a procurar uma emoção em mim. Não vou deixar. Não vais conseguir descobrir os mundos em que penso, os sorrisos que procuro ou as gotas de sal que percorro. Aí sentado, nesse banco de madeira igual àquele em que me sento, podias ser eu. Olhos nos olhos, vejo-me reflectida no vidros atrás de ti. Sobre que estás a escrever? Sobre nadas, possivelmente. Aqui abundam os nadas. A tua caneta está suspensa sobre o papel. As linhas estão cheias de rabiscos imperceptíveis. Familiar. As luzes das ruas passam por nós, porque não escreves sobre isso? Espera, mas então estou eu a dar-te ideias? Era o que faltava. Procura tu próprio as luzes. Busca sozinho as ansiedades de uma noite que ainda agora começou. Descortina por ti próprio os passos das mulheres e dos homens, dos bichos que somos, das feras em que nos tornamos, do sangue a que tomamos o gosto e no qual saciamos a fome. Escreve e risca. Volta a escrever e deixa-te encantar pela musicalidade dos rostos disformes de quem passa e não te vê. Não olhes para mim! Eu não tenho nada para te dizer! Nada, ouviste? Vou levantar-me e sair, estou a avisar-te. Não me olhes pelo canto do olho. Fechaste o caderno, mas eu sei que estás a gravar as imagens aí dentro, todos fazemos isso, todos, ouviste? Vou saltar do eléctrico. Viro-te as costas e os teus olhos perseguem-me, sinto-os a queimar-me a pele. Caraças, desiste! De uma vez. Eu não tenho nenhuma história para ti. Adeus. Sigo pela rua escura, de chave na mão. E tu segues, aos solavancos na vida. Eu bem vi, voltaste a abrir o caderno e tomas notas. Perdido no tempo. Cambada de escritores!!





Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa

Hoje abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal
olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo


poema de Ana Paula Inácio em Canções Subterrâneas de "A Naifa"


e há flores que brotam, apesar das sombras.


xadrez


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Um grupo de miúdos conversa animadamente à minha frente. Quatro raparigas e dois rapazes, um deles fuma um cigarro e a cinza cai no chão, onde repousam já pequenos pedaços de pacotes de açúcar. Vestem de negro, calçam botas da tropa, uma das raparigas tem uma camisola rosa e todas elas têm o cabelo comprido. Há três cadeiras vazias em redor da mesa e um homem pergunta se pode tirar uma. Ele veste um casaco de cabedal, o cabelo começa a ficar grisalho e as patilhas precisam de ser aparadas. Sentado, lê o jornal. A esta distância não percebo qual é. Vejo, porém, que a pouco mais de um metro de mim, à minha direita, um velho de boina e cabelo branco, de óculos a escorregar pelo nariz, faz as palavras cruzadas do Diário de Notícias. Está pensativo e de pernas cruzadas. Afaga o joelho direito. Talvez lhe doa por causa da mudança do tempo. Leva a mão à cabeça e é então que reparo que não são as palavras cruzadas, mas um jogo de sudoku. Tenho de reparar melhor nos pormenores. Como o título do artigo que o rapaz à minha esquerda está a ler. “Ilumine as suas ideias”. Mexe os lábios enquanto lê. Há que tempos não via alguém fazer isso. À frente tem um copo de vidro alto, com um líquido amarelo amarelo e uma palhinha. Interrogo-me sobre o que será, talvez sumo de maçã. Fecha a revista e percebo que é uma publicação sobre feng-shui. Passa agora por mim dois homens com ar distinto, de sobretudo e cachecol, em busca de uma mesa. Deixo de os ver, mas não me apetece virar a cabeça para trás e averiguar se conseguiram um lugar. Do lado direito, a seguir à mesa do velhote, sentou-se um rapaz de t-shirt branca e vermelha. Fuma um cigarro e olha para o relógio. O velho descruza as pernas. Talvez estejam a ficar dormentes. Afaga agora a perna esquerda. Entretanto, uma rapariga sentou-se em frente ao rapaz do cigarro. Traz um café e um bolo na mão conversam e o rapaz deita cinza num copo de plástico com um resto de água. Acabo de escrever “água” e, ao levantar o olhar, tenho um traseiro a tapar-me a vista. Um casal estacou mesmo à minha frente. Estão de pé e olham em redor. Demoram pouco tempo. Nisto, atrás de mim ouço um arrastar de cadeiras. Um grupo de três ou quatro rapazes com gorros e grandes cabeleiras levanta-se e sai. Na minha diagonal, um rapaz franzino de óculos e fato escuro às riscas lê o jornal. Não, afinal é uma revista e pouco depois o rapaz levanta-se, tosse e vai-se embora. Deixa na mesa um tabuleiro com restos de macdonalds. Mais à frente, ao balcão, duas raparigas conversam, sentadas em bancos altos. Uma tem uma camisola verde e cabelo com madeixas claras. Um cigarro circula entre a boca e a mão. Vejo-a de perfil. A outra, de cabelo preto e casaco castanho, está de costas. Bebem café. Ao meu lado o rapaz do sumo de maçã já saiu sem eu dar conta e agora chegam duas raparigas novas. Reparo de imediato na mala de uma delas, com desenhos da personagem Jack do Tim Burton. Só depois vislumbro as meias de rede as botas da tropa, o casaco estilo vitoriano e a saia de renda preta. Ambas têm o cabelo preso num rabo de cavalo. Parecem irmãs. A elas junta-se uma mulher mais velha de casaco comprido rosa. Talvez seja a mãe. Chega uma quarta mulher, esta de casaco quase até aos pés castanho. Penso que talvez tenham ido às compras. Agora bebem as quatro café. Enquanto procuro novos rostos conto as páginas que já escrevi no bloco. Esta é a oitava. Tenho de fazer uma letra mais pequena e deixar de riscar tantas vezes o que escrevo. Caso contrário, o espaço é sempre pouco e nunca há papel que chegue para contar as histórias em meu redor. Hoje, aqui, não há espaço para a angústia da folha em branco. Só a angústia da folha. O telefone não toca. Faz-se tarde. Levanto-me e saio. Talvez alguém pegue no ponto onde terminei e escreva: uma rapariga de cabelo curto, calças de bombazina e camisa xadrez fecha um bloco de notas. Espreita o telemóvel e coloca ambos os objectos dentro de uma mala estilo tropa. Levanta-se e sai, vagarosamente, como se esperasse ainda por alguém. Passa pelas mesas, errante, e demora o olhar em cada uma das pessoas. Na mesa ficou uma chávena de café e um cinzeiro de prata não utilizado.


be calm...


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...aim at the neck.


camadas


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O sangue escorria em arabescos poéticos pelas paredes. Havia pedaços de ossos e miolos espalhados no chão, num raio de vários metros, e os olhos arregalados estavam fixos nos pés da mulher. Ajoelhada, apanhada de surpresa, afogava-se num vómito admirável.
Ela chegara até ele numa noite de Verão. Uma daquelas noites de intenso suor, em que até um resvalar do olhar provoca calor. Uma daquelas noites em que apetece arrancar a pele em busca de alguma fresquidão. Pela janela da água-furtada viu-a, nessa noite, a libertar-se das camadas que a sufocavam. Sentado, absorvia os ruídos calmos da cidade nocturna. No entanto, distraiu-se ao dar conta da fresca sensação que a silhueta do outro lado da rua lhe oferecia.
À medida que as camadas iam caindo, libertas no chão, nele crescia uma curiosidade cada vez maior. Conseguiu, a tempo, reprimir o impulso de colar o nariz ao vidro da janela, para melhor observar a dança que se desenrolava à sua frente. Talvez houvesse música naquele quarto. Começou a imaginar que cheiros teriam os movimentos daquele corpo ondulante, agora já sem camadas.
Sentada na cama, de costas nuas na sua direcção, ela não adivinhava os pensamentos ocultos por uma cortina, a alguns metros de distância. Ignorava o brilho dos olhos escondidos pela escuridão de uma noite húmida e silenciosa. Recostou-se, com um livro nas mãos, e assim ficou, envolta em personagens de mistério e com a pele lambida pela quietude.
Ele observava os contornos ao longe. Perdeu-se em pensamentos sobre quem seria aquela mulher. Nunca a tinha visto. Na verdade, nunca prestara muita atenção aos habitantes do prédio da frente. Aos habitantes de nenhum prédio, de facto. A concentração era facilmente dispersa nas nuvens viajantes e no cantar harmonioso de uma cidade intoxicada de desejos. Emocionavam-no os carris longínquos dos eléctricos. As penas perdidas ao vento dos pombos em dias frios de nevoeiro. Os dedos delicados revolvendo o açúcar numa chávena de café. Os cartazes meio rasgados colados em janelas e portas de tijolo. O passo apressado de uma criança para acompanhar a mãe nas pedras da calçada. O fumo de um cigarro vagaroso, enleado nos pensamentos de um velho na leitaria da esquina.
Mas a noite estava quente. Dentro dele, algo começou a ebulir, provocado por umas pernas pousadas numa cama. A linha que traçavam, sob a luz de aguarela, terminava na curva de um seio mal revelado. Susteve a respiração. Há qualquer coisa de místico que prende um homem ao peito de uma mulher. A delicadeza da curva, semelhante a uma lágrima, fê-lo emocionar-se. Sentiu o mesmo aperto no estômago, o mesmo arrepio da nuca de uns rodopiantes segundos de “deja vu”. Como se estivesse ali novamente, sem alguma vez ter estado. Como se lhe fosse dada, sem disso ter consciência, uma segunda oportunidade de recordar e se emocionar perante os tons matizados de um mamilo.
Quando aquelas pernas se levantaram do estado de repouso, muitos minutos depois, a luz apagou-se. O silêncio, então. Apenas a respiração fazia ondular a cortina, do lado de cá da rua. Ela dormia já, e ele iria deixar de conseguir dormir.
Nas noites que se seguiram, o calor deixou de se fazer sentir tão intensamente. Era, por fim, possível respirar por entre as brisas amenas. Só no quarto dele o calor aumentava. Nas águas furtadas de um telhado indistintos da cidade, onde os gatos vivem e a carne dos homens sobrevive, ele não conseguia dormir. A visão queimara-lhe as pálpebras, pois quando a luz se extinguiu, era já tarde demais.
Era tão tarde quanto lhe diziam as dores em cada músculo. De cada vez que voltava à janela, em busca de um reflexo de pele, o sabor desvanecia-se em nada. Os dedos procuravam nele próprio a satisfação que, noites antes, ela lhe dera sem saber. E como lhe doía o prazer de não saber quem era aquela mulher. Porque só não a conhecendo lhe era fácil gozar sem remorsos. Mas eles vinham na mesma, salgados e chorosos, pois não encontrava um corpo para desaguar.
Foi então que decidiu. Aquela imagem poética haveria de ser dele. Haveria de lhe dar a tranquilidade dos sonhos bem dormidos. Haveria de o sossegar noite após noite, sem que fosse necessário fazer vigília, à espera dela. Bateu com a porta, desceu a escada a correr e foi propôs-se a trazer aquela aguarela para casa. Pendurada na parede do quarto, seria uma obra-prima da mais profunda beleza. Um daqueles quadros que fazem chorar de emoção, por sabermos que, sob os tons da paleta do pintor, se escondem amores furtivos e promessas vãs de suores e peles.
À medida que atravessava a rua, olhava o intricado padrão das nuvens. Não se deixou distrair. Na mente estava entranhado o objectivo que o atormentava desde que vira aquelas pernas. E, contudo, eram umas pernas banais. Mas até as coisas mais banais deixam de o ser quando decidimos fixar-nos nelas. E ele estava fixo numa só ideia. Resgatar as pernas daquela mulher para ele. Só para ele. Para que nas suas águas furtadas houvesse sempre uma luz de aguarela e uma emoção da pele que se contrai num arrepio. Não se distraiu com as nuvens, pois ia enleado nestes pensamentos.
A porta fechada não o desencorajou. Esperou pacientemente até alguém deixar a porta apenas encostada e, sem hesitações, entrou. Enquanto subia as escadas os degraus rangiam na sua consciência, mas chegado ali, já nada o poderia fazer mudar de ideias. Como poderia mudar de ideias se, naquele instante, apenas uma porta o separava daquela mulher que, noites atrás, o fizera chorar como uma criança. Como podia voltar atrás sem entrar de rompante na beleza daquelas pernas que queria suas a todo o custo? Como podia esquecer a luminosidade daquela curva do seio, onde desejava cravar unhas e dentes, que ansiava por beliscar e torcer como plasticina, ao ritmo da imaginação? Como podia ignorar a vontade animal de devorar e sangrar aquele pedaço de carne que conhecera com tanta delicadeza e poesia, na penumbra de uma cortina?
Tocou à porta e, de lá de dentro, sentiu os passos ténues na sua direcção. Assim que dois olhos encovados assomaram na frincha aberta, no instante em que dois lábios secos formaram um inquieto “sim?”, a imagem de menina-mulher foi demasiado carnal e mundana, até para ele. Absolutamente encharcada em normalidade. A banalidade, no final de contas, arrastou-o pelos braços e deu-lhe um murro no estômago que, por pouco, não o fez vomitar. E o sonho que ele vivera noites e noites sem dormir, era tão mais celestial, meu Deus, tão mais do outro mundo do que deste. Caralho, que carnes eram aquelas, que pés, que peito pesado e olhar de esquisso ainda mal começado? Onde estava a aguarela da luz que via do outro lado da rua? Ele queria um poema, e veio uma estrofe mal amanhada abrir-lhe a porta. Nesses dois segundos, toda a história mudou. As nuvens voltaram a distrai-lo e, ainda que lá fora não estivesse ao alcance da vista, sentiu um bando de pássaros à solta nas entranhas. Desculpa, enganei-me na porta. Procurava um poema, mas não o encontrei. Pensei que tinha uma rima para ti, mas deixei-a naquelas águas furtadas. Ali, do outro lado da rua. Sabes? Atrás daquela cortina repousa o desejo de todas as minhas noites por ti. Mas estou cansado. Desculpa ter-te acordado. Eu estou a precisar de dormir. De repousar. Não durmo há cinco dias... Ou seriam cinco semanas? Preciso de te ir buscar, onde te deixei
Com isto tirou a pistola do bolso de trás dos jeans enxovalhados e deu um tiro nos miolos. Que se espalharam pelo chão, formando um bonito poema, numa métrica improvisada com o sangue que escorria pelas paredes.




escola secundária luis de camões, lisboa


escola secundária padre antónio vieira, lisboa


escola secundária rainha dona leonor, lisboa



Nota-se muito que tenho uma fixação por corredores?





És especial. Não que goste mais de ti que do João e da Diana mas, até ao momento, és a mais pequenina. O teu riso maroto de menina de três anos, quando me vais acordar, é impagável. Tia Fia!!! - gritas, enquanto pulas e foges, num desafio claro...
Em Abril vais ter uma irmã. Vai-se chamar Leonor. E eu estou feliz por ti, linda Beatriz.


calorias


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Ele não gostava de admitir, mas às vezes comia um corpo de mulher como quem devora um bigmac. Chafurdava na pele, lambia os dedos, pegava naquela massa e, sem emoção mas com um apetite dos diabos, saciava-se. De cada vez que o fazia dizia que era a última vez, mas a fome era sempre demasiada. De cada vez que fodia como quem come um bigmac, censurava-se pela dieta descontrolada. Mas as mulheres eram como as batatas fritas. Uma atrás da outra, cada uma melhor que a outra, a nadar em ketchup, a desfazer-se na boca. A formar um bolo alimentar nojento na sua consciência. Às vezes vomitava de prazer. Mas ele não conseguia resistir sempre que uma fêmea chegava ao pé dele e dizia: come-me toda! E ia, diligentemente, buscar ketchup ao frigorífico...

Texto inspirado por este



Vejo-te tantas vezes e nunca te fiz o retrato. Vi-te há dias, a vestir o fato de Pai Natal, acompanhado das tuas renas. Continuei a ver-te várias vezes ao longo dos dias de festa e hipocrisia. Quando voltei da aldeia, voltei a ver-te. No chão, sentado, de gola suja, negra. Quem passa por ti tenta sempre saltar para o outro lado da rua. Mas eu gostava de, um dia, fazer uma festinha aos teus cães. Deixas, Pai Natal?


imagem de fotoben




pormenor de escola secundária em Lisboa



Soubera eu a café
Em chávena quente, na noite fria
E toda eu seria calor em ti
Diluída no teu toque
Entre deleites de açúcar e canela.
Souberas tu a chá de menta e flor de anis
E o vapor por mim adentro
Invadiria as profundezas
Do travo a limão encerrado em mim.
Soubéramos nós a mazagran,
A café, limão e gelo
Para acalmar o calor das peles
E a noite teria o nosso travo
Escaldante, rompendo o frio,
A transpirar sabores.



Diluis-te no verniz carmim dos meus dedos, cravados no teu respirar. Fora destas linhas, nada és. Aqui, tudo. No papel voas e sabes a mel. Nascido da tinta e de curvas e letras sinuosas, revelas-te mim, com a voz presa num grito ainda por ler. Alimentas-te de uma chama trémula que dança à minha frente. Contigo há a certeza dos dias belos e sem sentido. Porque não há razão nos dias belos. Onde o sol e a relva são os nossos corpos amados e abandonados. Tenho-te junto ao meu caderno de linhas. Onde tu vives e eu sobrevivo. Ambos ao ritmo de uma escrita que é ilegível aos olhos, mas não ao bater da máquina cá dentro.
Trazes a tranquilidade do abraço ao adormecer e do cheiro na pele de todas as noites. E ensaio contigo uns passos de dança, no roçar de dois rostos e no encontrar de duas mãos. Somos felizes assim, apenas nós. Apenas eu, com a imagem de ti entalada entre um suspiro e outro. E pinto as unhas de carmim, onde vislumbro uma sombra, um reflexo do teu desejo de existência que, de facto, vive através das letras que agora se escrevem. Que se vão escrevendo a cada momento...



Saio para a rua sem horas marcadas
Solta no vaivém dos passos
Que as gentes loucas e imaginadas
Expiam em melodias e ritmos falsos.
Suspiro na curva do respirar
No negro do asfalto, no pombo morto
Que, esvaído em sangue, desiste de voar.
Não mais que um instante, um bater de asas solto.
E, contudo, nada pára.
Entre um vibrar do sangue cá dentro
E uma lágrima que se perde no caminho
Nada a lamentar, nenhum sofrimento,
É, afinal, apenas uma ave que perdeu o ninho.
Na podridão da carne que perece
Ainda que os olhos redondos fitem quem passa,
Vivos, vibrantes, numa última prece,
São só penas, só um bicho, uma nojenta massa.
E enquanto as rodas poderosas
Espremem o resto do ser
As pernas seguem sem rumo, vagarosas.
Nada mais há a fazer.
E vou assim, para longe do animal
Sempre com a ideia posta no pombo esmagado:
Teria sido distracção, acidente casual
Ou um simples suicídio premeditado?



Há poemas sem dono
Que se reconhecem nos olhos de quem lê.
Tal como um sorriso
Nunca é largado ao abandono,
Há sempre alguém
Que nele se enleia. E revê.
As palavras, contudo, encerram
Propósitos que só sente
Quem está próximo.
Quem percebe uma subtil dispersão,
Uma sintonia que se entranha
Nos diversos rostos e corpos
De uma personagem que não mente
Mas se alimenta de subtilezas estranhas,
E confronta os demónios em nós.
Há um abalo em cada poema
Quando nos reconhecemos na intenção.
E embora não sejamos donos das letras,
Fazêmo-las nossas por instantes.
A escrita é, assim, peça solta do sistema
Que regula o arrepio, a emoção
Quando, sem dono
Este poema é mais teu agora
Do que antes.