Já não a podia ouvir. Acordei sobressaltado com um barulho que me pareceu de móveis a serem arrastados. O ruído foi de tal forma intrusivo que doeu p’ra caralho, como se me começassem a arrancar o escalpe. Como se de repente me tivessem perfurado o crânio com um berbequim e, não contentes com o estrago, tivessem andado à roda com a broca, quem sabe, para meter cá dentro uma bucha e pendurar um lindo quadro. Mas era lá em cima que andavam a arrastar móveis, às duas da manhã! Outra vez! Já não havia paciência para aquele arrastar de madeiras, de metais, de pedras, de corpos, fosse lá o que fosse. Aquele arrastar pelo chão como se as cadeiras estivessem moribundas, como se a mesa quisesse cavar com toda a força um sulco nas tábuas, como se todo o peso daquela casa estivesse preso àquele arrastar.
Tentei voltar a dormir, mas de cada vez que fechava os olhos, aquela besta voltava à carga. É que já não havia paciência! Ter-se-ia lembrado, àquela hora, que afinal não gostava da estúpida disposição dos móveis? Dos estúpidos móveis com estúpidos naperons e estúpidos puxadores dourados? Do estúpido tapete florido, por baixo de uma estúpida mesa onde sorria uma estúpida fruteira com estúpidos frutos de plástico?
Mais estúpido era eu, a ouvir aquele arranhar por cima da minha cabeça. Aqueles lampejos de trovoada que só não o eram porque, na escuridão, rebrilhavam antes os meus olhos irados, alimentados pela dor no meu cérebro. Já não podia mais. Apetecia-me espetar-lhe um murro na cabeça, dar-lhe um pontapé, empurrar-lhe a cristaleira para cima, arrastá-la pelo cabelo por toda a casa, enrolá-la no tapete e mandá-la pela escada abaixo. Tudo, menos ouvir aquele arrastar de móveis às duas da manhã, a ribombar por cima dos meus olhos, alojado nas minhas têmporas.
Ri-me de mim próprio, porque de repente vi o meu reflexo nos “Crimes Exemplares” de Max Aub, e considerei toda a cena absurda. Suspirei e revi a situação ridícula que estava a acontecer. Não obstante, fui lá acima, arrombei a porta e atirei a velha pela janela.
gosto muito desse livro. uf, memórias.
:)
Deixaste um sorriso perverso plantado nos meus lábios.
fiquei com pena da velha barulhenta :-)