xadrez


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Um grupo de miúdos conversa animadamente à minha frente. Quatro raparigas e dois rapazes, um deles fuma um cigarro e a cinza cai no chão, onde repousam já pequenos pedaços de pacotes de açúcar. Vestem de negro, calçam botas da tropa, uma das raparigas tem uma camisola rosa e todas elas têm o cabelo comprido. Há três cadeiras vazias em redor da mesa e um homem pergunta se pode tirar uma. Ele veste um casaco de cabedal, o cabelo começa a ficar grisalho e as patilhas precisam de ser aparadas. Sentado, lê o jornal. A esta distância não percebo qual é. Vejo, porém, que a pouco mais de um metro de mim, à minha direita, um velho de boina e cabelo branco, de óculos a escorregar pelo nariz, faz as palavras cruzadas do Diário de Notícias. Está pensativo e de pernas cruzadas. Afaga o joelho direito. Talvez lhe doa por causa da mudança do tempo. Leva a mão à cabeça e é então que reparo que não são as palavras cruzadas, mas um jogo de sudoku. Tenho de reparar melhor nos pormenores. Como o título do artigo que o rapaz à minha esquerda está a ler. “Ilumine as suas ideias”. Mexe os lábios enquanto lê. Há que tempos não via alguém fazer isso. À frente tem um copo de vidro alto, com um líquido amarelo amarelo e uma palhinha. Interrogo-me sobre o que será, talvez sumo de maçã. Fecha a revista e percebo que é uma publicação sobre feng-shui. Passa agora por mim dois homens com ar distinto, de sobretudo e cachecol, em busca de uma mesa. Deixo de os ver, mas não me apetece virar a cabeça para trás e averiguar se conseguiram um lugar. Do lado direito, a seguir à mesa do velhote, sentou-se um rapaz de t-shirt branca e vermelha. Fuma um cigarro e olha para o relógio. O velho descruza as pernas. Talvez estejam a ficar dormentes. Afaga agora a perna esquerda. Entretanto, uma rapariga sentou-se em frente ao rapaz do cigarro. Traz um café e um bolo na mão conversam e o rapaz deita cinza num copo de plástico com um resto de água. Acabo de escrever “água” e, ao levantar o olhar, tenho um traseiro a tapar-me a vista. Um casal estacou mesmo à minha frente. Estão de pé e olham em redor. Demoram pouco tempo. Nisto, atrás de mim ouço um arrastar de cadeiras. Um grupo de três ou quatro rapazes com gorros e grandes cabeleiras levanta-se e sai. Na minha diagonal, um rapaz franzino de óculos e fato escuro às riscas lê o jornal. Não, afinal é uma revista e pouco depois o rapaz levanta-se, tosse e vai-se embora. Deixa na mesa um tabuleiro com restos de macdonalds. Mais à frente, ao balcão, duas raparigas conversam, sentadas em bancos altos. Uma tem uma camisola verde e cabelo com madeixas claras. Um cigarro circula entre a boca e a mão. Vejo-a de perfil. A outra, de cabelo preto e casaco castanho, está de costas. Bebem café. Ao meu lado o rapaz do sumo de maçã já saiu sem eu dar conta e agora chegam duas raparigas novas. Reparo de imediato na mala de uma delas, com desenhos da personagem Jack do Tim Burton. Só depois vislumbro as meias de rede as botas da tropa, o casaco estilo vitoriano e a saia de renda preta. Ambas têm o cabelo preso num rabo de cavalo. Parecem irmãs. A elas junta-se uma mulher mais velha de casaco comprido rosa. Talvez seja a mãe. Chega uma quarta mulher, esta de casaco quase até aos pés castanho. Penso que talvez tenham ido às compras. Agora bebem as quatro café. Enquanto procuro novos rostos conto as páginas que já escrevi no bloco. Esta é a oitava. Tenho de fazer uma letra mais pequena e deixar de riscar tantas vezes o que escrevo. Caso contrário, o espaço é sempre pouco e nunca há papel que chegue para contar as histórias em meu redor. Hoje, aqui, não há espaço para a angústia da folha em branco. Só a angústia da folha. O telefone não toca. Faz-se tarde. Levanto-me e saio. Talvez alguém pegue no ponto onde terminei e escreva: uma rapariga de cabelo curto, calças de bombazina e camisa xadrez fecha um bloco de notas. Espreita o telemóvel e coloca ambos os objectos dentro de uma mala estilo tropa. Levanta-se e sai, vagarosamente, como se esperasse ainda por alguém. Passa pelas mesas, errante, e demora o olhar em cada uma das pessoas. Na mesa ficou uma chávena de café e um cinzeiro de prata não utilizado.


8 reacções a “xadrez”

  1. Anonymous Anónimo 

    tantos pormenores, tantas histórias à espera de ser contadas...quase que me apetece roubar uma...olha, dás-me uma delas? preciso tanto de histórias para contar...

  2. Anonymous Anónimo 

    com certeza que dou uma das minhas histórias. ou posso ir contigo descobrir novas histórias... :)

  3. Anonymous Anónimo 

    joga com os bispos.

    usas o "pastor" e fazes cheque-mate em duas jogadas.

  4. Anonymous Anónimo 

    Acabo de ler o texto e preparo-me para sair. Talvez alguém leia este comentário e imagine: um rapaz de cabelo louro, fato cinza e camisa azul fecha o browser onde lia aquelas palavras. Encerra o computador e veste um sobretudo antracite. Levanta-se e dirige-se para o elevador, vagarosamente, como se esperasse encontrar alguém que o convidasse para um último café. Passa pela porta rotativa e demora o olhar nas nuvens cinzentas que ao longe se vão acumulando. É hora de ir para casa.

  5. Anonymous Anónimo 

    Sempre um prazer ler-te. Brinde.

  6. Anonymous Anónimo 

    O café estava bom? ;)*

  7. Anonymous Anónimo 

    Minimizo o browser quando o chefe se aproxima, o script de ligação já está pronto? quase, quase... Volto a ler-te.
    Alguém dirá, um rapaz de cabelo castanho, olhos verdes, vestindo uma camisola laranja, umas jeans pretas e umas botas de montanha Cat, sorri ao ler qualquer coisa no pc. De seguida escreve também qualquer coisa e sai da sala talvez para almoçar. Não, ainda é cedo. Foi buscar um café. Foi reflectir no que leu. Talvez isso. Ou talvez tenha parado um pouco para pensar em alguém.
    Talvez.

  8. Anonymous Anónimo 

    Não é a primeira vez mas repito: gosto, não só do que escreves mas, como escreves.

    Neste somos claramente arrebatados, pelo meio nem sempre fácil, ao local que relatas.

    E o título está brilhante…

    Voltarei!

palavras soltas

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