crisálida


E-mail this post



Queres que eu me lembres de ti?(?)



All personal information that you provide here will be governed by the Privacy Policy of Blogger.com. More...





"Não te cortes, Alice. Eu não quero saborear o teu sangue", disse-lhe, enquanto a olhava, e ela se olhava também, em frente ao espelho das desilusões. Como podia afastá-la daquele reflexo que até a ele atormentava? Como uma traça envolta na perdição de uma luz perfeita, Alice tocava na superfície espelhada e, mesmo quando a chama lhe ardia na pele, mesmo com as mãos em carne viva, deixava a vontade própria cair ao chão, junto às rendas e desejos, e atirava-se conta os vidros estilhaçados. Os passos quebrados de ambos ecoavam por toda a casa.
Ele nada podia fazer. Nunca conseguira contrariar as vontades dela. Os caprichos. As angústias. Os medos. Tardava em compreender aquela mulher. Mulher? Menina... Sabia lá ele o que se escondia por detrás daqueles olhos que o encadeavam e do sorriso onde residia a esperança do amanhã. Tinha andado perdido toda a vida e perdera-se de amores pelas mãos de Alice. Nunca vira mãos tão esguias e delicadas. Os dedos compridos mas fortes resgataram-no das pedras da calçada, remendaram-lhe a pele, coseram-lhe o coração à carcaça que era ele naqueles dias, o homem que não via outro destino que não a podridão sob as folhas varridas pelo vento, caídas das árvores desnudas. Alice, cheia de vida e com a sombra da morte entre os lençóis. Alice dos dedos compridos, das linhas e agulhas, tece os corpos, remenda os sorrisos, faz baínhas na solidão, onde esconde as dores e uma ou outra lágrima por cair.
Ele não poderia nunca saborear o sangue de Alice. Mesmo se todos os pedaços de vidro lhe cravassem o corpo, mesmo que o sangue escorresse pelas coxas e pelo sexo, mesmo que ele lambesse cada lágrima de sangue rubro na pele de porcelana dos seus braços, Alice saberia sempre ao tesouro escondido e nunca revelado. Porque há sempre um pote de ouro na outra ponta do arco-íria e ele não acreditava em contos de fadas.
Naquela noite chovera. Chovera tão intensamente que ambos se permitiram chorar até as entranhas secarem. E mesmo quando secaram, pediram às mágoas mais um esforço e espremeram os restos do sal misturado com algumas gotas de sangue. Depois pararam. Ficaram a ouvir a chuva a cair, beberam um do outro, acalmaram a comoção provocada pelos reflexos dos olhares. Então, sentados no chão de madeira e presos ao sabor da pele, deram as mãos e prometeram encontrar-se. Estarei na outra ponta do arco-íris, quando voltar a chover, disse ela. E eu estarei do outro lado do espelho, onde te encontrei, confirmou ele. Apressa-te a vir-me salvar, pediu Alice. Porque eu não sei quanto tempo consigo pairar, suspensa nesta luz que me mata, que me embrulha o corpo num turbilhão de fantasmas e vozes. Promete que procuras por mim. Porque em breve se extinguem as mil cores dos meus olhos. Porque em breve não resistirei a esta crisálida que cresce sob a minha pele e eu própria me atirarei contra o espelho, para tentar chegar a este lado. Em mil pedaços eu, em mil cacos os vidros. Não vislumbras, já, os teus dentes a dilacerar a minha carne, os teus dedos a escorregar no sangue dos meus? Sacrifiquemo-nos um ao outro. Vamos percorrer-nos mesmo que seja preciso pisar com força os vidros de um espelho que ora se parte, ora volta a encaixar todas as peças. No fim, a chuva tudo lavará.
Eu sei que não queres que eu me corte, que não queres saborear o meu sangue. Mas e se não tiveres outra escolha, para que eu possa viver nas tuas palavras?


7 reacções a “crisálida”

  1. Anonymous Anónimo 

    Tão bonito isto que escreveste...tão bonito, tão como tu és e às vezes quase te esqueces...

    Já te disse que gosto de ser teu amigo?

  2. Anonymous Anónimo 

    Hum... deixa cá pensar... acho que és capaz de ter dito qq coisa do género, eheheh.

    Eu não me esqueço que sou bonita, o que acontece é às vezes achar que os outros são mais bonitos do que eu. Acho que percebes o que quero dizer... Beijos, amigo.

  3. Anonymous Anónimo 

    Era o que apetecia, viver nas tuas palavras...

  4. Anonymous Anónimo 

    DEves saber que o original do Too Drunk to Fuck é um original dos Dead Kennedys, banda californiana dos oitentas, conduzida por Jello Biafra, mentor também da editora da Alternative Tentacles, entres outras coisas e outras bandas.

  5. Anonymous Anónimo 

    olá Povd, obrigada pela informação. De facto sabia que esta música é um original dos Dead Kennedys, mas esqueci-me de mencionar, ehehe... Aqui fica então o historial do "Too Drunk to Fuck", para os menos atentos. Obrigada pela tua visita, que é sempre um prazer, tal como visitar o teu Posso Ouvir Um Disco, que é desde há bastante tempo uma das minhas fontes musicais por excelência. Beijos. :)

  6. Anonymous Anónimo 

    "Nunca vira mãos tão esguias e delicadas. Os dedos compridos mas fortes resgataram-no das pedras da calçada, remendaram-lhe a pele, coseram-lhe o coração à carcaça que era ele naqueles dias, o homem que não via outro destino que não a podridão sob as folhas varridas pelo vento, caídas das árvores desnudas."

    Mãos como as tuas...

  7. Anonymous Anónimo 

    Muito obrigado. Aparece quando quiseres. ;-)

palavras soltas

      Convert to boldConvert to italicConvert to link