O sangue escorria em arabescos poéticos pelas paredes. Havia pedaços de ossos e miolos espalhados no chão, num raio de vários metros, e os olhos arregalados estavam fixos nos pés da mulher. Ajoelhada, apanhada de surpresa, afogava-se num vómito admirável.
Ela chegara até ele numa noite de Verão. Uma daquelas noites de intenso suor, em que até um resvalar do olhar provoca calor. Uma daquelas noites em que apetece arrancar a pele em busca de alguma fresquidão. Pela janela da água-furtada viu-a, nessa noite, a libertar-se das camadas que a sufocavam. Sentado, absorvia os ruídos calmos da cidade nocturna. No entanto, distraiu-se ao dar conta da fresca sensação que a silhueta do outro lado da rua lhe oferecia.
À medida que as camadas iam caindo, libertas no chão, nele crescia uma curiosidade cada vez maior. Conseguiu, a tempo, reprimir o impulso de colar o nariz ao vidro da janela, para melhor observar a dança que se desenrolava à sua frente. Talvez houvesse música naquele quarto. Começou a imaginar que cheiros teriam os movimentos daquele corpo ondulante, agora já sem camadas.
Sentada na cama, de costas nuas na sua direcção, ela não adivinhava os pensamentos ocultos por uma cortina, a alguns metros de distância. Ignorava o brilho dos olhos escondidos pela escuridão de uma noite húmida e silenciosa. Recostou-se, com um livro nas mãos, e assim ficou, envolta em personagens de mistério e com a pele lambida pela quietude.
Ele observava os contornos ao longe. Perdeu-se em pensamentos sobre quem seria aquela mulher. Nunca a tinha visto. Na verdade, nunca prestara muita atenção aos habitantes do prédio da frente. Aos habitantes de nenhum prédio, de facto. A concentração era facilmente dispersa nas nuvens viajantes e no cantar harmonioso de uma cidade intoxicada de desejos. Emocionavam-no os carris longínquos dos eléctricos. As penas perdidas ao vento dos pombos em dias frios de nevoeiro. Os dedos delicados revolvendo o açúcar numa chávena de café. Os cartazes meio rasgados colados em janelas e portas de tijolo. O passo apressado de uma criança para acompanhar a mãe nas pedras da calçada. O fumo de um cigarro vagaroso, enleado nos pensamentos de um velho na leitaria da esquina.
Mas a noite estava quente. Dentro dele, algo começou a ebulir, provocado por umas pernas pousadas numa cama. A linha que traçavam, sob a luz de aguarela, terminava na curva de um seio mal revelado. Susteve a respiração. Há qualquer coisa de místico que prende um homem ao peito de uma mulher. A delicadeza da curva, semelhante a uma lágrima, fê-lo emocionar-se. Sentiu o mesmo aperto no estômago, o mesmo arrepio da nuca de uns rodopiantes segundos de “deja vu”. Como se estivesse ali novamente, sem alguma vez ter estado. Como se lhe fosse dada, sem disso ter consciência, uma segunda oportunidade de recordar e se emocionar perante os tons matizados de um mamilo.
Quando aquelas pernas se levantaram do estado de repouso, muitos minutos depois, a luz apagou-se. O silêncio, então. Apenas a respiração fazia ondular a cortina, do lado de cá da rua. Ela dormia já, e ele iria deixar de conseguir dormir.
Nas noites que se seguiram, o calor deixou de se fazer sentir tão intensamente. Era, por fim, possível respirar por entre as brisas amenas. Só no quarto dele o calor aumentava. Nas águas furtadas de um telhado indistintos da cidade, onde os gatos vivem e a carne dos homens sobrevive, ele não conseguia dormir. A visão queimara-lhe as pálpebras, pois quando a luz se extinguiu, era já tarde demais.
Era tão tarde quanto lhe diziam as dores em cada músculo. De cada vez que voltava à janela, em busca de um reflexo de pele, o sabor desvanecia-se em nada. Os dedos procuravam nele próprio a satisfação que, noites antes, ela lhe dera sem saber. E como lhe doía o prazer de não saber quem era aquela mulher. Porque só não a conhecendo lhe era fácil gozar sem remorsos. Mas eles vinham na mesma, salgados e chorosos, pois não encontrava um corpo para desaguar.
Foi então que decidiu. Aquela imagem poética haveria de ser dele. Haveria de lhe dar a tranquilidade dos sonhos bem dormidos. Haveria de o sossegar noite após noite, sem que fosse necessário fazer vigília, à espera dela. Bateu com a porta, desceu a escada a correr e foi propôs-se a trazer aquela aguarela para casa. Pendurada na parede do quarto, seria uma obra-prima da mais profunda beleza. Um daqueles quadros que fazem chorar de emoção, por sabermos que, sob os tons da paleta do pintor, se escondem amores furtivos e promessas vãs de suores e peles.
À medida que atravessava a rua, olhava o intricado padrão das nuvens. Não se deixou distrair. Na mente estava entranhado o objectivo que o atormentava desde que vira aquelas pernas. E, contudo, eram umas pernas banais. Mas até as coisas mais banais deixam de o ser quando decidimos fixar-nos nelas. E ele estava fixo numa só ideia. Resgatar as pernas daquela mulher para ele. Só para ele. Para que nas suas águas furtadas houvesse sempre uma luz de aguarela e uma emoção da pele que se contrai num arrepio. Não se distraiu com as nuvens, pois ia enleado nestes pensamentos.
A porta fechada não o desencorajou. Esperou pacientemente até alguém deixar a porta apenas encostada e, sem hesitações, entrou. Enquanto subia as escadas os degraus rangiam na sua consciência, mas chegado ali, já nada o poderia fazer mudar de ideias. Como poderia mudar de ideias se, naquele instante, apenas uma porta o separava daquela mulher que, noites atrás, o fizera chorar como uma criança. Como podia voltar atrás sem entrar de rompante na beleza daquelas pernas que queria suas a todo o custo? Como podia esquecer a luminosidade daquela curva do seio, onde desejava cravar unhas e dentes, que ansiava por beliscar e torcer como plasticina, ao ritmo da imaginação? Como podia ignorar a vontade animal de devorar e sangrar aquele pedaço de carne que conhecera com tanta delicadeza e poesia, na penumbra de uma cortina?
Tocou à porta e, de lá de dentro, sentiu os passos ténues na sua direcção. Assim que dois olhos encovados assomaram na frincha aberta, no instante em que dois lábios secos formaram um inquieto “sim?”, a imagem de menina-mulher foi demasiado carnal e mundana, até para ele. Absolutamente encharcada em normalidade. A banalidade, no final de contas, arrastou-o pelos braços e deu-lhe um murro no estômago que, por pouco, não o fez vomitar. E o sonho que ele vivera noites e noites sem dormir, era tão mais celestial, meu Deus, tão mais do outro mundo do que deste. Caralho, que carnes eram aquelas, que pés, que peito pesado e olhar de esquisso ainda mal começado? Onde estava a aguarela da luz que via do outro lado da rua? Ele queria um poema, e veio uma estrofe mal amanhada abrir-lhe a porta. Nesses dois segundos, toda a história mudou. As nuvens voltaram a distrai-lo e, ainda que lá fora não estivesse ao alcance da vista, sentiu um bando de pássaros à solta nas entranhas. Desculpa, enganei-me na porta. Procurava um poema, mas não o encontrei. Pensei que tinha uma rima para ti, mas deixei-a naquelas águas furtadas. Ali, do outro lado da rua. Sabes? Atrás daquela cortina repousa o desejo de todas as minhas noites por ti. Mas estou cansado. Desculpa ter-te acordado. Eu estou a precisar de dormir. De repousar. Não durmo há cinco dias... Ou seriam cinco semanas? Preciso de te ir buscar, onde te deixei
Com isto tirou a pistola do bolso de trás dos jeans enxovalhados e deu um tiro nos miolos. Que se espalharam pelo chão, formando um bonito poema, numa métrica improvisada com o sangue que escorria pelas paredes.