Sempre achara o Natal uma época sombria. Lembrava-se da humidade nas paredes, do frio que fazia nas manhãs de geada, do crepitar da lenha na lareira negra dos anos e anos de mãos aquecidas. Deixara de acreditar no menino Jesus quando, ao montar o presépio, o deixara cair ao chão. Partiu-lhe a cabeça. Não faz mal, compra-se outro. Mas então há outro? Há muitos, de todas as cores e feitios. Quando se partem, trocam-se. E deitou o corpo pequenino de barro para o lixo, juntamente com a fé que os dedos de criança conseguiam abarcar. Hoje seria capaz de pegar em muitos meninos Jesus, com os dedos grandes de mulher. Mas não. Mãe, não sei do Natal, mãe. Partiu-se, dentro de mim. Há luzes, sim, há luzes, e música, e o frio de antigamente. Há todas as cores nas ruas, há gente triste que não vê nada. Mãe, sabes que há um puto na rua, a tocar acordeão, com um cão que parece uma ratazana? E há um homem velho, cego, que se senta num banco todo o dia a tocar músicas tristes que não vê. E também um outro, de barba preta e comprida, que anda sempre com meia dúzia de cães brancos de neve a reboque. Há tantos ninguém por aqui, mãezinha. Eles também deixaram cair o menino Jesus? Foi, mãe? É por isso que se encostam às pedras, às paredes, com o sorriso para dentro? Há outro que não tem rosto. Percebes o que quero dizer? É feio, disforme, e senta-se à espera de uma mão, de alguém que lhe diga onde procurar os olhos, o nariz, a boca. É tudo tão triste, mãe, sabes? Até o palhaço que, parado, sem público, discute ao telemóvel, vestido de cores obscenamente coloridas. Até isso é triste. Mas o que está mais perto é o "homem-estátua", que nunca diz nada, que nunca sente nada, que vê tudo a partir daquela esquina. É tudo tão pesado. Passo a passo, devorou o brilho, mas não ficou saciada. Gritou-lhe, no íntimo, a vontade de voltar atrás, de reescrever todas as emoções que sentia e desconhecia. De observar descarada e calmamente cada um dos pais natais tristes da rua que via todos os dias. Talvez fosse mais simples fingir que nada vira, porém. O Natal caiu-lhe em cima e só lhe apetece ser egoísta.
A um mês da consoada, estas tuas palavras anunciam já o que é o Natal: fingir que nada se vê, iludir os outros e nós mesmos... o Natal cai-nos em cima. Beijo.