Pronto. Agora é que é. Pela terceira vez negaram-me um aumento de ordenado e eu estou a ficar cansada. Gosto muito do que faço. Gosto, a sério. E, durante os seis anos ao serviço da mesma empresa, o gosto pelo trabalho foi sempre mais forte que todas as idiotices que fazem parte do submundo organizacional.
Mas estou farta de me vender abaixo do preço de mercado. De fazer tudo e mais alguma coisa, de ser polivalente e pau para toda a obra sem um cêntimo a mais. Sem falsas modéstias, sou boa no que faço. E quando não sou, tento ser. Procuro formação, aprendo com quem sabe, desenrasco-me. Só que as empresas têm de se habituar a pagar bem pelos bons profissionais. A crise já não é argumento válido. É um argumento que se gasta quando a ele se recorre constantemente. E a dedicação, o profissionalismo, os fins-de-semana e tudo o resto que não é mensurável, eu já provei que consigo dar. Só que, tal como as empresas querem qualidade e rendimento, eu também quero qualidade de vida. Por isso, este é o meu derradeiro desejo de ano novo:

Estou à procura de um novo trabalho ou de colaborações. Sei escrever. Sei fazer notícias, reportagens e quejandos jornalísticos. Prefiro a imprensa à televisão e à rádio porque ainda não ultrapassei o complexo de ser "sopinha de massa". Acho que tenho alguma criatividade e às vezes, nem sempre, tenho alguma piada. Sou asseadinha - bom, tirando os 15 dias em que fiquei sem gás em casa, mas como diz um amigo, não me apetece falar sobre isso... - e ultrapassada alguma timidez inicial, que fica sempre bem, até sou bastante comunicativa.
Não vos maço mais com as minhas inúmeras qualidades... Não vou estar com panos quentes. Preciso de ganhar mais dinheiro (de forma legítima e em algo que os meus pais possam divulgar lá na aldeia, claro..) e este é o principio de um esforço real que vou ter de fazer para que isso se concretize. Se precisarem de alguém que escreva por vocês, uma ajudinha em projectos de comunicação, qualquer coisa em que eu me enquadre minimamente, epá... digam qualquer coisa. O mail é lasocaal@yahoo.com e está aberto a propostas estimulantes dentro dos parâmetros da decência. Aviso desde já que passar a ferro e fazer strip são actividades que não se enquadram na minha categoria profissional... Pelo menos, por enquanto. Um bom ano a todos!


closing time


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Resolução de ano novo: chorar mais vezes de alegria.





Hesitava em abrir a porta. Há sempre uma caixa de Pandora atrás de cada fechadura. Havia monstros atrás daquela, de certeza. Iriam dar-lhe a mão, ou iriam devorá-la? Inspirou fundo e rodou a chave. Estava escuro e receou dar um passo em falso em direcção ao vazio. Para seu espanto, o chão estava bem presente. E, apesar da escuridão, tacteando pelas paredes descobria o caminho. Aos poucos, aprendeu a antecipar o desconhecido. Não havia nada a recear. E disse para si própria: se conseguir chegar ao fim sem tropeçar, tudo vai correr bem. E não havia monstros.





Não creio em Deus Nosso Senhor. Não rezo nas igrejas. Tão pouco me ajoelho. O Natal é uma tradição, com o bacalhau, as batatas e o azeite. O cepo no largo da igreja a crepitar na noite escura. As mãos agrestes aquecidas por alguns dedos de conversa e a memória de quem já morreu. O Natal é para mim recordação de dor e de morte. Mas também de musgo apanhado em manhãs húmidas, colocado em baldes para fazer o presépio. Além das cores, o Natal pouco me diz. Há demasiados sentimentos contraditórios à solta para que o sorriso seja sincero e a alma se vista de branco.
Ainda assim, tenho um presépio em casa. Mas não é a Maria nem o José, tão pouco o menino Jesus. Para mim, é toda a minha vida encerrada em bonecos de feira, dos quais me lembro desde que sou gente. Gastos, batidos, alguns já colados com cola pica-pau, neles estão a minha aldeia, as memórias de infância, a broa quente com manteiga, a caruma, as vozes dos meus pais, dos meus avós, dos meus irmãos, as ruas que sei de cor, as manhãs de geada, o caminho para a escola, os fritos de abóbora com açucar e canela, o cheiro dos pinheiros e todas as partículas daquilo que hoje sou, por causa do que fui.
O meu presépio é um bocado de mim. E combina bem com a decoração a roçar o "kitsh" da minha casa debaixo da ponte. Não creio em Deus. Mas creio em mim. Toda poderosa.


ocupado


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Cheiro o teu cabelo e deixo-me arrastar pela tua língua. De onde saíste, com tamanho odor a pecado? Vejo apenas sombras por entre o fumo. Silhuetas mágicas movem-se ao som de uma música que não me lembro o nome. Apenas tu em meu redor. Descontrolada. A descontrolar-me.

Não sei de onde vieste. Não sei como nos reconhecemos na pele um do outro. Não sei quem tocou quem primeiro. Talvez tenha sido o reflexo no espelho que falou por nós e nos apanhou desprevenidos. As tuas mãos no meu cabelo. E a tua boca em mim. Ia perguntar-te se vens aqui muitas vezes. Mas já não quero saber. Este é o momento.

As sombras do outro lado podem ver-nos, sabes? Está escuro aqui, mas os nossos movimentos não passam despercebidos. As conversas e os copos abafam o nosso desejo, é certo, mas a cortina de fumo e metal não é suficiente para que desapareçamos. E eu quero subir por ti, quero saber quem és. Porque não pode ser senão fórmula de alquimista este diluir do meu olhar no teu e do teu corpo nas minhas mãos. O teu ombro é suave.

Não quero beber mais. A tua pele embriaga-me. Aqui, neste espaço, à vista de todos, as pernas fraquejam e toda eu sou mulher, intensa, de instintos iluminados pelos néons. Toda eu sou corpo em ti. Deixa-te cair comigo, antes que amanheça e toda a realidade revele a crueza da luz.

Abre a porta. Quero-te só minha. Por inteiro. Não há ninguém aí dentro, vamos nós ocupar as paredes de azulejo frio com o nosso desejo. Será o nosso refúgio.

Não ouço o que me dizes ao ouvido. Deixemo-nos de palavras. Percebo a tua linguagem e isso basta-me. Entremos. Fecha a porta. Ainda agora começámos a rodopiar. O barulho cessou. Agora apenas eu e tu.

Céus, como és bonita. Mais ainda agora, sob esta luz amarela e mil vezes reflectida nos espelhos. Estamos apertados, encurralados por azulejos de outras noites, de outras peles. Hoje é a nossa pele que suplica. Dêem-nos espaço. Rasgo-te as meias para poderes respirar. Suspiras.

Suspiro. Fechas os olhos ao ritmo da minha respiração. Como é possível não darmos conta do cenário em que mãos e boca, olhos e pernas se encontram e celebram festivamente? Ouço a música lá fora, quase sumida. O pulsar das tuas veias marca o compasso dos movimentos. A tua boca entreaberta diz-me que está demasiado calor. Tira a camisola e refresca-te em mim.

A parede está fria. Vejo as tuas costas a fumegar quando embatemos contra ela. A tua pele faz-me sede.

Não pares agora. O teu corpo encontrou molde no meu. A temperatura oscila de forma insuportável. Não sentes que está tudo a mudar de sítio? Ou somos nós que nos movemos ao longo das paredes?

Batem à porta. Não digas nada. Sabes-me a noite e a perigo. Encontro um templo na linha da tua cintura e quase choro.

Murmuro palavras que não conheço. Há gente lá fora. A porta está trancada? Deixou de importar quando os meus dedos encontraram um arrepio no caminho para os teus sentidos.

Já não sei qual de nós é qual. Perdi-me nesta dança desenfreada. É o teu suor ou o meu que escorre pelas paredes?

Saliva. Nada mais me ocorre.

Temos pouco tempo para sentir a eternidade.

Temos pouca eternidade para sentir o tempo.

Estás reflectida em cada azulejo. És de todas as cores e tens o cheiro da urgência.

As marcas no teu prazer são salgadas. O instante é agora. E para sempre.


A luz amarela e o espelho devolvem a vertigem da noite. Batem à porta. Tudo pode esperar. A nossa pele fundida tem os tons dourados da tranquilidade. O desejo repousa, agora, no chão, junto aos corpos vazios. Está ocupada. Lentamente deixam de bater à porta. A música volta e no ar paira o odor da carne queimada.

Não abras a porta.

Não abro.



texto inspirado em foto de raio de sol

Sim, estava perdida. Enganara-se naquele último cruzamento, decerto, entre o respirar e um toque indiscreto. Saíra de casa – mas onde era casa, de facto? – e batera com a porta, decidida a encontrar-se nas ruas negras e sujas, nos prédio emparedados, nos risos amaldiçoados das prostitutas das esquinas, nas mãos invejosas dos homens embriagados de si. Perdeu-se no caminho para a redenção. Sempre soubera que os caminhos abençoados serpenteiam e enganam as almas incrédulas, no rodopiar dos néons de uma cidade filha da puta. A cidade não era menina e moça. Era uma mulher velha e gasta, deitada em azuis de rio e vermelho do sangue das vielas. E ela perdera-se ali. Como quem acreditara no amor possível entre dois cadáveres. Como quem quisera dar à luz um balde de lágrimas. Como quem dera um beijo nas pedras onde se vomitavam as memórias. Ao ritmo de um tango enraivecido, perdeu-se. E deixou-se ficar enebriada pela madrugada, supensa na vibração de uma contradança. A olhar as águas deslizantes. A ver o seu próprio reflexo, de lá para cá. Alguém daria pela sua falta.



Login. Password. Duas ou três mensagens ou, usando linguagem “cinematográfica”, “You’ve got mail”, que sempre é mais “world wide web”. Comentários a temas que desenvolvo no blog ou mensagens de quem conhece pessoalmente a 'broa quente com manteiga'. Respondo aos mails, rio-me ou fico pensativa perante as palavras que me são dirigidas. Se não conheço o autor da missiva, faço uma breve incursão pelo respectivo blog – no caso de este existir e ser indicado. Dependendo do conteúdo, dos pensamentos, das imagens ou de tantas outras coisas que não são mensuráveis, adiciono-o às “buquemarques”.
Referi certa vez, no “Passa aí o lexotan”, que a primeira vez que ouvi falar em blogs foi no início de 2003, num curso de formação em Fontes e Pesquisa de Informação. Já não era novidade para muita gente, mas para mim era. Na altura encarei os blogs como uma espécie de serviço informativo, locais onde jornalistas, essencialmente, relatavam situações ou desenvolviam temas da actualidade. Em breve me apercebi do "boom" que os blogs estavam a ter, a vários níveis, e da democratização que a internet estava a sofrer. Mais do que nunca, a internet democratizava-se e dava ao “povo” o poder de se exprimir sem barreiras e de forma gratuita. Alguém – não me lembro quem – disse que nunca se escreveu tanto como agora. Acho bem que assim seja. De repenre saltaram cá para fora os pensamentos, a poesia, as prosas poéticas, as opiniões, as emoções dos rostos que passam por nós na rua. Os “opinion makers” têm sempre tempo de antena assegurado. O comum dos mortais não. Eu posso não querer escrever um livro, mas gosto de mostrar o que escrevo. Gosto que me seja dada essa oportunidade.
E gosto de pensar que hoje, mais do que nunca, o mundo está documentado. Não é só a literatura. Não são apenas os meios de comunicação. Não é a rádio, a televisão e a imprensa. É o registo do que somos. Se realmente houver vida no “outer space”, e se o mundo como o conhecemos for destruído pelos erros humanos (ou pelo mesmo meteorito que aniquilou os dinossáurios, o que vier primeiro...), e se além das baratas sobreviverem os blogs (que também são uma outra forma de parasitas, lol...), é interessante imaginar os alienígenas a ler-nos. De uma forma mais ou menos criativa, de um modo expositivo ou interventivo, a blogoesfera é, do meu ponto de vista, uma das nossas mais ricas fontes de documentação. Não confundir com fontes de informação, claro está, que isto do jornalismo nem sempre se pode misturar com emoção e criatividade.
Mal ou bem, vamo-nos conhecendo. E esse conhecimento que se tem dos outros, ainda que superficial na maior parte das vezes, revela o que vai no cérebro e nas entrenhas de cada um. Vai-se descortinando os olhos de cada ser humano que se esconde atrás de um computador. E isso, para mim, é extremamente valioso. Conhecer a escrita e a criatividade dos outros é viciante. No limite, é benéfico porque me leva a conhecer a minha própria escrita e criatividade. E a nela ficar viciada.
Desde há seis anos que a minha profissão é a escrita. No entanto, a escrita jornalística (ou o meio onde se trabalha) nem sempre nos dá a possibilidade de “descambar” pelos meandros do absurdo ou para “legendar” algumas imagens que se cruzam connosco no caminho. Admito que nos últimos anos, até ao Lexotan, pouco escrevi das minhas impressões pessoais. Aliás, pouca escrita criativa – se assim o poderei dizer – pratiquei. Havia um “nós” que vivia tão intensamente que pouco espaço ou vontade havia para tal. Preferia dizer as emoções ao ouvido. Não sabia que essa espécie de preguiça literária se iria voltar contra mim e o “nós” falhou. Provavelmente precisava das letras para sobreviver. E assim surgiu o Lexotan, uma cova onde, lentamente, a beleza foi apodrecendo. De vez em quando despontavam na terra pútrida alguns malmequeres. Pequenas estórias, impressões, registos de situações, momentos ficcionais. Comecei a triturar cenas do meu quotidiano com cenas do quotidiano de outras vidas errantes. No fundo, iniciei um trabalho de reflexão sobre o que me rodeia.
Não pretendo chegar a lado algum com as letras que junto. Tão pouco isto é um diário. É uma auto-análise, por vezes necessária para saber que estamos vivos. Tal como as relações que se desenvolvem. Mas isso já é uma outra estória... A seu tempo.


quarto 316


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Meia-noite e meia no quarto de hotel. Estava eu a preparar-me para escrever algo sobre cabelos brancos, envelhecimento, amargura e desilusão... Estava eu a escolher um nome e os contornos da minha personagem... Estava eu a procurar as palavras e uma possível imagem – que às vezes são as palavras que inspiram as imagens – quando ouço um ruído silvante. Depois, dois toques na porta. Pensei que fosse o meu colega de trabalho, que se encontrava a três quartos de distância, a querer combinar outra hora para o pequeno-almoço. Não era. Ao dirigir-me à porta, havia um bilhete no chão. Antes de ler, abri a porta. Ninguém. Apenas isto:

“If you are not tired and would like to have someone to talk to, do not hesitate to knock on my door :)
BR, Neighbour.
PS – By no means, I want to harass you, so if you want to go to sleep, I whish you a good night!”


Posto isto, fiquei paradita no meio do quarto, vestida com um pijama de padrão duvidoso – ok, pronto, são patos amarelos, não vinha preparada para grandes farras nocturnas... – a pensar no que fazer. Sou completamente atada em situações deste género. Aliás, nunca me aconteceu nada deste género! Será que era mesmo comigo? Batia à porta do rapaz só para lhe ver a cara mais ao perto – julgo que havia passado por ele no corredor umas horas antes – e agradecer o convite? Ia à varanda como quem vai fumar um cigarro (bolas, não tinha tabaco!) e averiguar se ele estaria na varanda respectiva? Ignorava por completo o bilhete, dado que se tratava de um desconhecido e a minha arma mortífera (o meu gato...) havia ficado em casa a pensar onde se teria metido a dona? Resolvi então responder ao BR, ou lá como se chamava o moço..

“Sorry, I must be up very early in the morning. I'm going to sleep now. Thanks for the invitation, anyway. Maybe some other time, who knows? Enjoy your stay. Kisses.”

Não fui dormir, como é evidente, mas escrever. E pronto, assim se evitou o que poderia ter sido uma fabulosa e inesperada história de amor. E assim percebo que estou, realmente, a ficar velha. Não são apenas os cabelos brancos, não é apenas a imagem triste e feia que o espelho me reflecte. É o cansaço de um ano que passou e que me congelou a capacidade de arriscar. Estamos a ficar velhos quando tudo o que fazemos é a jogar pelo seguro. Hoje prefiro jogar pelo seguro. Gostava de ter mais oportunidades para ser pequenina, para ser inconsequente, para não pensar no amanhã. Sinto falta desses tempos. Mas quando se está só, é só connosco que contamos.
E eis como um simples convite para conversar – inocente ou não, isso agora não vem ao caso – me põe a pensar em ti, que já devias estar enterrado, mas continuas ao meu lado, na cama, quando estou quase, quase a acordar, e percebo que, afinal, não estás. E eis que vou dormir, no meu quarto de hotel, a recordar os dias despreocupados de “nós”, quando cantávamos a duas vozes “Olha o sol, quando nasce, por detrás da montanha, lai lai lai, lai lai lai lai, que bom, junto às cabrinhas brincarei...”.
E choro. Espero que o vizinho “camone” não ouça, ou ainda tem ideias de me vir consolar!... “Hello my darling, are you feeling lonely tonight? Here’s something to cheer you up!”





Não sei como é com os outros, mas quando fico alojada num hotel, residencial, pensão e alojamentos similares, tenho o hábito de abrir todas as gavetas que existem no quarto. Nunca encontrei nada de especial, é certo, mas gosto daqueles instantes de antecipação, do momento em que a minha mão puxa a gaveta, com a sensação de que vou encontrar algo tremendamente insólito ou disparatado. Normalmente o recheio das gavetas das mesas de cabeceira ou secretária são sacos de lavandaria, regras de funcionamento, listas de mini bar, cinzeiros, envelopes e papel de carta ou panfletos turísticos.
Depois há as listas telefónicas. Costuma haver apenas uma, a da região onde me encontrar naquele dia. Desde há algum tempo ganhei o hábito, nas minhas viagens de trabalho, de procurar habitantes locais com um nome semelhante ao meu. Não é difícil, dado que tenho um banal nome português – embora goste de pensar que o meu nome próprio e apelido se conjugam de uma forma bastante harmoniosa. Delicio-me, então, a verificar onde moram essas minhas “almas gémeas” e imaginar como serão, que idade terão, como será a sua casa, se possuem cães ou gatos, se serão mães, avós ou solteironas, se trabalham no campo com as mãos calejadas ou se gerem a sua própria empresa, se serão atrevidas na cama ou se dormem de camisa de noite de flanela e a Bíblia entre as pernas.
Por vezes também há uma lista de páginas amarelas. Há tempos lembrei-me que, quando era miúda, à falta de livros para ler, costumava folhear as páginas amarelas, para ver os pequenos anúncios, estudar os desenhos, as fontes, o design na maior parte das vezes de gosto duvidoso. Lá por casa nunca ninguém deitava nada fora. Por isso, as revistas, os catálogos e as listas telefónicas iam-se acumulando. Até eu ser crescida o suficiente para me fartar da falta de espaço e começar a fazer uma selecção. Mas passei muitas tardes na varanda, ao sol, a comer tangerinas, uvas, castanhas, maçãs, o que quer que fosse a fruta da época, a ir pelos meus dedos ao longo das páginas amarelas.
Hoje, fora em trabalho, num quarto de hotel com duas camas – devem estar a gozar comigo! –, tenho uma lista de páginas amarelas na mesa de cabeceira. Acho que vou ali assaltar o mini-bar e rir um bocado a ver os desenhos. Sempre é mais didáctico que ver os “Morangos com Açúcar”...




Café Vertigo, Largo do Carmo, Lisboa


Encontraram-se por entre uma cortina de fumo. Quente e suave, o chá escorreu-lhes pela garganta. Queimava-lhes as palavras. Pegava fogo à respiração.
Conheceram-se à porta. Não havia mesas livres. Quando vagou aquela debaixo das andorinhas e dos desejos reflectidos, encaminharam-se rapidamente para lá. Sentaram-se ao mesmo tempo e nenhum dos dois foi capaz de mandar o outro embora.
Eram o número 12 e beberam chá. Aqueceram-se, assim. Um ao outro. Com sabor a limão e gengibre na língua húmida. A vela foi-se apagando ao ritmo das horas.



Ontem à noite jantei e voltei a adormecer no sofá, a ver televisão com o gato enrolado nos pés, como tem sido habitual nos últimos tempos. Acordei com uma mensagem por volta da meia-noite. Fui lavar os dentes enquanto mandava um “kolmi”, por falta de saldo no telemóvel. Habitual nos dias de penúria que correm, também. Conversei alguns minutos e fui para a cama. O gato miava, à procura do melhor ângulo recto nas minhas pernas para se acomodar. E pronto... a insónia tomou conta de mim. Mas eu que estava a dormir tão bem no sofá, agora não adormeço? Assim se passou uma hora, entre pensamentos vários, desde pessoas que teimo em recordar a lugares que fui e gostava de voltar, datas que passaram e datas que estão para vir, planos que têm sido alterados, "and so on”... Depois dei por mim a tecer um texto na minha mente. Pensei que devia levantar-me e escrevê-lo, para não me esquecer dos pontos-chave. A preguiça foi mais forte, prendeu-me o corpo à cama e deixei-me enlear pelos pensamentos que alimentavam o referido texto. Claro que, hoje de manhã, depois de ter adormecido sem dar conta, de pouco me lembrava. Mas é qualquer coisa sobre a blogoesfera e que deriva de conversas que tive com amigos, sobre a necessidade e o desprendimento, sobre a rapidez com que se conhecem pessoas e a facilidade com que elas desaparecem, a quantidade de informação e o nível de intimidade que se tem em poucos dias com estranhos, o perigo que está sempre inerente às relações cibernéticas... Mas como hoje não tenho tempo, estas considerações vão ter de ficar para outro dia.




foto de Raio de Sol

Às vezes, de surpresa, encontrava o sublime nos dedos dos pés...



Havia uma porta atrás da qual residia um sorriso. Tragicamente, a campainha estava avariada. Decidiu, por isso, bater com os nós dos dedos, uma, duas, três vezes, num compasso qualquer ritmado que fazia lembrar uma melodia conhecida. Esperou. Nada. O sorriso não estava em casa. Tinha ido ao dentista. Pôr-se bonito.


o lado de cá


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vista da minha janela

Smplesmente, o lado de cá. O lado do reconhecimento. O fragmento do que vejo. O lado negro e luminoso. Onde descansam os meus olhos. E onde ri um cigarro aceso. O lado onde o fumo assume a forma dos dias. O lado onde caio e me levanto. Onde os limoeiros me lembram que cada recomeço de primavera tem sempre no sumo a amargura do inverno. O lado de cá, de onde se vê o lado de lá.



Escrevo para me lembrar de mim, das imagens cruas que me atormentam.
Escrevo para me esquecer da vida. Enquanto as palavras escorregam pelos dedos, já não sei a minha face nem o meu cheiro. E a cada letra que escrevo tudo é, ainda, tão nítido. Quero inventar verbos de dor, mas cada um parece pouco para descrever este lume. Quero falar do sublime, mas as chagas abertas recordam-me sempre a podridão. A carne maltratada e as emoções violadas. Escrevo para me reinventar, mas sempre acabo por me dizer mentiras. Em busca de um colo, de um consolo vão. E nos momentos de maior lucidez, escorro por mim e deixo-me cair, abandonada, no chão. A justiça é sempre tão ambígua. Eu sou sempre tão ambígua. E daí, poderá ser apenas um momento de fraqueza. E ninguém me apanha. Voo. Até encontrar a minha queda.