Hesitava em abrir a porta. Há sempre uma caixa de Pandora atrás de cada fechadura. Havia monstros atrás daquela, de certeza. Iriam dar-lhe a mão, ou iriam devorá-la? Inspirou fundo e rodou a chave. Estava escuro e receou dar um passo em falso em direcção ao vazio. Para seu espanto, o chão estava bem presente. E, apesar da escuridão, tacteando pelas paredes descobria o caminho. Aos poucos, aprendeu a antecipar o desconhecido. Não havia nada a recear. E disse para si própria: se conseguir chegar ao fim sem tropeçar, tudo vai correr bem. E não havia monstros.
Cheiro o teu cabelo e deixo-me arrastar pela tua língua. De onde saíste, com tamanho odor a pecado? Vejo apenas sombras por entre o fumo. Silhuetas mágicas movem-se ao som de uma música que não me lembro o nome. Apenas tu em meu redor. Descontrolada. A descontrolar-me.
Não sei de onde vieste. Não sei como nos reconhecemos na pele um do outro. Não sei quem tocou quem primeiro. Talvez tenha sido o reflexo no espelho que falou por nós e nos apanhou desprevenidos. As tuas mãos no meu cabelo. E a tua boca em mim. Ia perguntar-te se vens aqui muitas vezes. Mas já não quero saber. Este é o momento.
As sombras do outro lado podem ver-nos, sabes? Está escuro aqui, mas os nossos movimentos não passam despercebidos. As conversas e os copos abafam o nosso desejo, é certo, mas a cortina de fumo e metal não é suficiente para que desapareçamos. E eu quero subir por ti, quero saber quem és. Porque não pode ser senão fórmula de alquimista este diluir do meu olhar no teu e do teu corpo nas minhas mãos. O teu ombro é suave.
Não quero beber mais. A tua pele embriaga-me. Aqui, neste espaço, à vista de todos, as pernas fraquejam e toda eu sou mulher, intensa, de instintos iluminados pelos néons. Toda eu sou corpo em ti. Deixa-te cair comigo, antes que amanheça e toda a realidade revele a crueza da luz.
Abre a porta. Quero-te só minha. Por inteiro. Não há ninguém aí dentro, vamos nós ocupar as paredes de azulejo frio com o nosso desejo. Será o nosso refúgio.
Não ouço o que me dizes ao ouvido. Deixemo-nos de palavras. Percebo a tua linguagem e isso basta-me. Entremos. Fecha a porta. Ainda agora começámos a rodopiar. O barulho cessou. Agora apenas eu e tu.
Céus, como és bonita. Mais ainda agora, sob esta luz amarela e mil vezes reflectida nos espelhos. Estamos apertados, encurralados por azulejos de outras noites, de outras peles. Hoje é a nossa pele que suplica. Dêem-nos espaço. Rasgo-te as meias para poderes respirar. Suspiras.
Suspiro. Fechas os olhos ao ritmo da minha respiração. Como é possível não darmos conta do cenário em que mãos e boca, olhos e pernas se encontram e celebram festivamente? Ouço a música lá fora, quase sumida. O pulsar das tuas veias marca o compasso dos movimentos. A tua boca entreaberta diz-me que está demasiado calor. Tira a camisola e refresca-te em mim.
A parede está fria. Vejo as tuas costas a fumegar quando embatemos contra ela. A tua pele faz-me sede.
Não pares agora. O teu corpo encontrou molde no meu. A temperatura oscila de forma insuportável. Não sentes que está tudo a mudar de sítio? Ou somos nós que nos movemos ao longo das paredes?
Batem à porta. Não digas nada. Sabes-me a noite e a perigo. Encontro um templo na linha da tua cintura e quase choro.
Murmuro palavras que não conheço. Há gente lá fora. A porta está trancada? Deixou de importar quando os meus dedos encontraram um arrepio no caminho para os teus sentidos.
Já não sei qual de nós é qual. Perdi-me nesta dança desenfreada. É o teu suor ou o meu que escorre pelas paredes?
Saliva. Nada mais me ocorre.
Temos pouco tempo para sentir a eternidade.
Temos pouca eternidade para sentir o tempo.
Estás reflectida em cada azulejo. És de todas as cores e tens o cheiro da urgência.
As marcas no teu prazer são salgadas. O instante é agora. E para sempre.
A luz amarela e o espelho devolvem a vertigem da noite. Batem à porta. Tudo pode esperar. A nossa pele fundida tem os tons dourados da tranquilidade. O desejo repousa, agora, no chão, junto aos corpos vazios. Está ocupada. Lentamente deixam de bater à porta. A música volta e no ar paira o odor da carne queimada.
Não abras a porta.
Não abro.
Meia-noite e meia no quarto de hotel. Estava eu a preparar-me para escrever algo sobre cabelos brancos, envelhecimento, amargura e desilusão... Estava eu a escolher um nome e os contornos da minha personagem... Estava eu a procurar as palavras e uma possível imagem – que às vezes são as palavras que inspiram as imagens – quando ouço um ruído silvante. Depois, dois toques na porta. Pensei que fosse o meu colega de trabalho, que se encontrava a três quartos de distância, a querer combinar outra hora para o pequeno-almoço. Não era. Ao dirigir-me à porta, havia um bilhete no chão. Antes de ler, abri a porta. Ninguém. Apenas isto:
“If you are not tired and would like to have someone to talk to, do not hesitate to knock on my door :)
BR, Neighbour.
PS – By no means, I want to harass you, so if you want to go to sleep, I whish you a good night!”
Posto isto, fiquei paradita no meio do quarto, vestida com um pijama de padrão duvidoso – ok, pronto, são patos amarelos, não vinha preparada para grandes farras nocturnas... – a pensar no que fazer. Sou completamente atada em situações deste género. Aliás, nunca me aconteceu nada deste género! Será que era mesmo comigo? Batia à porta do rapaz só para lhe ver a cara mais ao perto – julgo que havia passado por ele no corredor umas horas antes – e agradecer o convite? Ia à varanda como quem vai fumar um cigarro (bolas, não tinha tabaco!) e averiguar se ele estaria na varanda respectiva? Ignorava por completo o bilhete, dado que se tratava de um desconhecido e a minha arma mortífera (o meu gato...) havia ficado em casa a pensar onde se teria metido a dona? Resolvi então responder ao BR, ou lá como se chamava o moço..
“Sorry, I must be up very early in the morning. I'm going to sleep now. Thanks for the invitation, anyway. Maybe some other time, who knows? Enjoy your stay. Kisses.”
Não fui dormir, como é evidente, mas escrever. E pronto, assim se evitou o que poderia ter sido uma fabulosa e inesperada história de amor. E assim percebo que estou, realmente, a ficar velha. Não são apenas os cabelos brancos, não é apenas a imagem triste e feia que o espelho me reflecte. É o cansaço de um ano que passou e que me congelou a capacidade de arriscar. Estamos a ficar velhos quando tudo o que fazemos é a jogar pelo seguro. Hoje prefiro jogar pelo seguro. Gostava de ter mais oportunidades para ser pequenina, para ser inconsequente, para não pensar no amanhã. Sinto falta desses tempos. Mas quando se está só, é só connosco que contamos.
E eis como um simples convite para conversar – inocente ou não, isso agora não vem ao caso – me põe a pensar em ti, que já devias estar enterrado, mas continuas ao meu lado, na cama, quando estou quase, quase a acordar, e percebo que, afinal, não estás. E eis que vou dormir, no meu quarto de hotel, a recordar os dias despreocupados de “nós”, quando cantávamos a duas vozes “Olha o sol, quando nasce, por detrás da montanha, lai lai lai, lai lai lai lai, que bom, junto às cabrinhas brincarei...”.
E choro. Espero que o vizinho “camone” não ouça, ou ainda tem ideias de me vir consolar!... “Hello my darling, are you feeling lonely tonight? Here’s something to cheer you up!”
Não sei como é com os outros, mas quando fico alojada num hotel, residencial, pensão e alojamentos similares, tenho o hábito de abrir todas as gavetas que existem no quarto. Nunca encontrei nada de especial, é certo, mas gosto daqueles instantes de antecipação, do momento em que a minha mão puxa a gaveta, com a sensação de que vou encontrar algo tremendamente insólito ou disparatado. Normalmente o recheio das gavetas das mesas de cabeceira ou secretária são sacos de lavandaria, regras de funcionamento, listas de mini bar, cinzeiros, envelopes e papel de carta ou panfletos turísticos.
Depois há as listas telefónicas. Costuma haver apenas uma, a da região onde me encontrar naquele dia. Desde há algum tempo ganhei o hábito, nas minhas viagens de trabalho, de procurar habitantes locais com um nome semelhante ao meu. Não é difícil, dado que tenho um banal nome português – embora goste de pensar que o meu nome próprio e apelido se conjugam de uma forma bastante harmoniosa. Delicio-me, então, a verificar onde moram essas minhas “almas gémeas” e imaginar como serão, que idade terão, como será a sua casa, se possuem cães ou gatos, se serão mães, avós ou solteironas, se trabalham no campo com as mãos calejadas ou se gerem a sua própria empresa, se serão atrevidas na cama ou se dormem de camisa de noite de flanela e a Bíblia entre as pernas.
Por vezes também há uma lista de páginas amarelas. Há tempos lembrei-me que, quando era miúda, à falta de livros para ler, costumava folhear as páginas amarelas, para ver os pequenos anúncios, estudar os desenhos, as fontes, o design na maior parte das vezes de gosto duvidoso. Lá por casa nunca ninguém deitava nada fora. Por isso, as revistas, os catálogos e as listas telefónicas iam-se acumulando. Até eu ser crescida o suficiente para me fartar da falta de espaço e começar a fazer uma selecção. Mas passei muitas tardes na varanda, ao sol, a comer tangerinas, uvas, castanhas, maçãs, o que quer que fosse a fruta da época, a ir pelos meus dedos ao longo das páginas amarelas.
Hoje, fora em trabalho, num quarto de hotel com duas camas – devem estar a gozar comigo! –, tenho uma lista de páginas amarelas na mesa de cabeceira. Acho que vou ali assaltar o mini-bar e rir um bocado a ver os desenhos. Sempre é mais didáctico que ver os “Morangos com Açúcar”...
Encontraram-se por entre uma cortina de fumo. Quente e suave, o chá escorreu-lhes pela garganta. Queimava-lhes as palavras. Pegava fogo à respiração.
Conheceram-se à porta. Não havia mesas livres. Quando vagou aquela debaixo das andorinhas e dos desejos reflectidos, encaminharam-se rapidamente para lá. Sentaram-se ao mesmo tempo e nenhum dos dois foi capaz de mandar o outro embora.
Eram o número 12 e beberam chá. Aqueceram-se, assim. Um ao outro. Com sabor a limão e gengibre na língua húmida. A vela foi-se apagando ao ritmo das horas.