- Menina...
Parei o passo apressado, mais uma vez ia atrasada para qualquer sítio, não implica necessariamente que tivesse um destino certo aonde chegar. Alguém falava comigo, mas não identifiquei de imediato a boca, a pessoa de onde provinha a voz fina, sumida, quase imperceptível. Olho para um aglomerado de rugas e cabelos brancos desgrenhados, vislumbro dois olhinhos pequenos e gastos num sorriso, à primeira vista, ausente e perdido.
- ... posso dar-lhe um livrinho?
Subitamente, toda eu me atrapalho. Uma indicação, as horas, ajudar a atravessar a rua, ler uma carta ou a posologia dos comprimidos, marcar um número de telefone, tudo menos isso. Os sons ficam-me presos algures entre o peito e a boca, não sei se tenho garganta a esta hora da manhã antes do primeiro café. Balbucio em tom monocórdico:
- Deixe estar, obrigada...
Ainda assim, consigo esboçar um sorriso – espero que não tenha parecido um esgar ou uma cólica. Acredito nos meus passos, na direcção que tomo ao acaso, na pele quente dos meus braços numa cidade em chamas, acredito no poder de um dia após o outro, na plenitude dos pensamentos vazios, na arbitrariedade dos gestos e das palavras.
Senti-me triste por não acreditar naquele rosto improvável. Por não dar um pouco do meu tempo às palavras de uma velha solitária. Talvez ela só quisesse partilhar um pouco da loucura, das vozes que lhe corroem o cérebro e comandam os músculos. Que lhe dão, no fundo, razão para viver. Que razões há para além da paixão louca pelo misterioso desconhecido?
*título "roubado" a uma BD editada da LX Comics, Bedeteca de Lisboa