O quarto da pensão em frente tem as portadas abertas. Vê-se uma cama desfeita. Malas. Roupa. Uma rapariga de cabelo molhado deambula por ali a lavar os dentes. Ouve-se um martelar no prédio ao lado. Os carros a passar. Os Pet Shop Boys na rádio. Apetece-me levitar, mas a gravidade prende-me ao chão.
Inesperadamente torna-se um dia quente e húmido. Tudo se me cola à pele, como se tivesse um iman no corpo. Apetece-me tomar um banho, mas não me levanto. Olho de novo pela janela, a rapariga que lava os dentes parou e olha directamente para mim...
Olho-a directamente nos olhos. Parece-me triste. Sorrio-lhe e ela devolve-me um sorriso tímido. Há nuvens e ameaça chover mas, por vezes, os raios de sol conseguem entrar nesta rua escura...
Como uma criança perdida ela fita-me demoradamente, os seus grandes olhos castanhos pedem silenciosamente ajuda. O suave desepero que se vê na sua face tocam-me. Devagar sento-me na cama. Reparo mais atentamente naquela figura que não me larga, no contorno do seu rosto, na côr do seu cabelo, na curva insinuante da sua anca. Sinto vontade de falar, mas tenho medo que o silêncio quebre esta ténue ligação que se cria entre nós.
Pergunto-me se estará sozinha naquele quarto. Imagino que não, mas não consigo ver mais ninguém. Seria fácil perguntar-lhe. Olá, como estás' há mais alguém aí contigo? Não posso. O olhar dela paralisa-me. Por breves segundos nada mais interessa. Eu estou aqui. Ela está ali. Por instantes criámos um elo, um eixo emotivo numa cidade que grita e estremece pela manhã. Pergunto-me se estará sozinha. Se terá dormido, se terá feito amor naquela cama, se terá gostado, se se terá levantado timidamente com o sol a fazer-lhe cócegas na curva da cintura, se terá ido tomar banho com um beijo preso na pele dos lábios...
A dúvida começa a atormentar-me, e de repente algo de improvavel acontece... ciume. Sim, sinto ciume de uma mulher que não conheço e que não sei se dormiu sozinha. Não é uma dúvida, é fulminante, como se trespassado por um ferro.!
"É uma estupidez penso!" Abano a cabeça e retomo o controlo que perdi por um momento. Não posso continuar ali indefinidamente. Resolvi. Vou tomar banho. Levanto-me e enconsto a janela devagar. Quando viro as costas em direcção à banheira páro. Que foi que vi agora mesmo? Uma lágrima? Uma lágrima pendia-lhe dos olhos? Impossivel, vi mal. Mas tenho a certeza, era uma lágrima. Abro a janela de repente mas aquela mulher já lá não está. Agora é a janela dela que está fechada. O coração aperta... não sei porquê mas sinto uma vontade incontrolável de falar com ela.
Onde estás?, pergunto-me. Com um simples fechar da janela, aquela rapariga quebrou qualquer coisa que se havia estabelecido entre nós. Uma estranha empatia. O cabelo molhado dela, o meu recente despertar, duas janelas que se cruzam. Há momentos em que tudo se conjuga e o mundo parece possuir uma ordem natural. Quero falar contigo! Aparece! Lembro-me, então, que o prédio é uma pensão e, muito provavelmente, a rapariga saiu do quarto. Irá descer as escadas, vai pagar a estadia, e, se esperar um pouco, vai surgir pela porta que vejo lá em baixo, a muitos metros de distância. É vertiginoso olhar para a rua e sentir que nunca mais a verei. E penso se não estarei a dar demasiada importância ao assunto. Afinal, ela não passa de uma desconhecida...
Não páro de repeti-lo: "É uma desconhecida!". Então porque é que não consigo parar quieta, porque é que não páro de andar de um lado para o outro neste quarto como se fosse um animal enjaulado?
De repente as minhas pernas ganham vida, num instante agarro nas chaves de casa e desco os degraus quatro a quatro, tenho que a apanhar antes que desapareça, tenho que falar com ela. Os olhos, o rosto, o corpo, ela não me sai da cabeça. E não só, há um medo que me invade o espirito: "E se eu chegar tarde demais?"
À medida que desço as escadas, apercebo-me que não sei o que estou a fazer. Acabei de acordar e sinto uma necessidade vital de falar com aquela pessoa. Como se a minha vida dependesse disso. Em pijama, de pés descalços, precipito-me para a rua. Assim que os pés tocam as pedras, penso que me precipitei. Devia ter-me calçado. Agora é tarde demais. Se alguém passa por mim e comenta o meu aspecto, não ouço nada, não vejo nada. Ignoro tudo. Estou decidida a cumprir o meu objectivo. Atravesso os curtos metros entre o prédio onde vivo e a pensão. Tem um ar decadente, uma porta grande, de madeira velha a precisar de pintura. Espreito. Tenho os olhos ainda ofuscados pelo sol do exterior, mas começo a aperceber-me do chão forrado a linóleo, das paredes cinzentas onde destoam algumas naturezas-mortas emolduradas. Um pequeno balcão, lá ao fundo. Parece-me ver alguém, mas não tenho a certeza. Semi-cerro os olhos, para tentar ver melhor.
Uma figura forma-se, mas a correria e a luz do sol não me ajudam a ver bem. Um homem, entroncado, barba rala, tatuagens que lhe enchem os braços e uma barriga que já conheceu outros tamanhos olha-me de alto a baixo. O seu ar incrédulo transforma-se lentamente num olhar lascivo. Percebo que ele não está sozinho, à minha volta diversos olhos despem-me consecutivamente. Começo a sentir-me mal, limpo as mãos suadas às calças do pijama e arranjo a t-shirt que mal me tapa. Demasiado larga, sinto que cada sopro da respiração daqueles homens me rodeia, me toca a pele, me envolve os seios, como se o suor que me escorre pelo corpo, fosse na verdade o suor daqueles que se fixaram em mim. Da mulher do quarto, por enquanto, nem sinal. Começo lentamente a perceber o gesto impensado que fiz...
:)
Que surpresa!
Mas não vou desistir. Não agora. Não me importa quantos olhos me despem ou imaginam o meu corpo por baixo do tecido. Devia ter pensado com mais calma antes de sair de casa precipitada, mas agora já está feito. Só me interessa saber onde está a rapariga. Timidamente, dirijo-me ao homem por detrás do balcão. O aspecto não ajuda à minha aproximação, porém, avanço na mesma. A camisa apresenta algumas nódoas que combinam com as flores de plástico da jarra e com o rádio da feira. A "cabana" do José Cid começa a tocar por entre os ruídos de uma estação mal sintonizada. O homem olha para mim, limpa o balcão com um pano e ri-se, de seguida, para as pessoas que estão sentadas num sofá ao lado. Não consigo vê-las bem, não percebo se são homens ou mulheres, mas sinto que me observam na escuridão. "Será que isto existe"?, começo a questionar-me. Encolho-me, cruzo os braços à frente do peito, tento que o meu corpo não dê nas vistas e falo. "Bom dia..."
Bloqueio... Bom dia, bom dia, bom dia, as palavras ressoam pela cabeça... Não sei que mais dizer. Bom dia, podia-me dizer como se chama aquela mulher de cabelo molhado que estava ainda há pouco no quarto andar? Que raio de pergunta, as frases voam-me pela cabeça mas apenas me saíu um bom dia. Estou muda, queda, gaga de boca aberta comicamente, num esgar aflito.
- Bom dia menina...
Ele olhava para mim com ar de gozo, e se houve coisa que sempre odiei foi que me mirassem como quem goza com a minha cara, normalmente levam imediatamente troco, resposta torta ou pontapé nos tomates conforme o grau do incidente, mas agora sinto-me deslocada, estranha, nua, indefesa.
Bom dia, bom dia, bom dia, não consigo pensar mais nada. Uma gota de suor escorre-me pela face caindo ruidosamente sobre o balcão.
Ao meu lado o barulho de metal a correr. As grades ferrugentas de um velho elevador acabam de se abrir.
Ficou em sobressalto. Só podia ser a rapariga dos olhos tristes, cuja presença, na janela, a hipnotizara. O que lhe iria dizer? Não percebia, sequer, que raio de impulso tinha sido aquele. Iria pensar que era maluca. Aliás, toda aquela gente estranha que a rodeava já pensava, decerto. De repente o elevador parou. A respiração ficou suspensa uns segundos, um aperto no peito, à espera que algo acontecesse. “Ó menina, mas afinal o que é que quer? Está tudo bem consigo? Quer ajuda para alguma coisa?”. O homem continuava a fitá-la, deixando cair os olhos pela t-shirt e pelas calças do pijama meio transparente, à espera de algo mais que um bom dia gaguejado. “Se é maluquinha da cabeça veio ao sítio errado, aqui não atendemos malucos...” Desviou os olhos do elevador, de onde ninguém saía, e lançou-lhe um olhar furioso. Como se atreve a chamar-me maluca? Mas logo sentiu que não valia a pena perder tempo com pormenores. O elevador, tinha de se aproximar do elevador. Mas porque é que ninguém saía? Com as pernas trémulas, andou alguns passos na direcção das grades. Antes de olhar para o interior do elevador observou os pés descalços. Estavam sujos. O silêncio começava a tornar-se insuportável. Era agora ou nunca...
Aproximou-se tremendo do elevador velho, uma beata mal apagada por pouco não lhe queimava os pés. Mal tinha dado dois passos quando a luz se acendeu de repente dentro da caixa do ascensor. Era ela, a rapariga que buscava, ainda com o cabelo molhado a olhar para ela como se buscasse algo. Ficou parada por um momento sem saber o que dizer. A rapariga sem mudar de expressão estendeu-lhe tristemente os braços. Ela avançou a medo, fascinada por aquelas mãos finas e sujas, por aqueles braços longos e suplicantes. Mas porque teria ela as mãos sujas se tinha acabado de tomar banho? Um barulho fê-la estremecer e o elevador começou de novo a mover-se, levando a rapariga para cima. Correu em direcção à porta e agarrando-se às grades viu que a máquina tinha parado apenas um andar a cima. Ficou ali parada e ouviam-se murmúrios. Subitamente, levada pela mesma força que a tinha feito sair de casa naquele estado, galgou os degraus para o andar de cima. Não a ia perder agora.
Um convite no meu blog :-)
Beijos
Não te vou perder agora, penso. Não posso, não quando cheguei tão perto. Subo os degraus de forma desenfreada, não me preocupo se deito ou não coisas abaixo, não me importo se estou a entrar onde não devo. Chego ao primeiro andar e vejo um corredor estreito que parece não ter fim. Portas de ambos os lados. Ouvem-se vozes por detrás de algumas delas. Os meus pés movem-se sobre uma alcatifa velha e gasta pelos passos dos anos. Não sei para onde foi a rapariga. Percorro o corredor a medo, com calma. Ao fundo há uma porta aberta. vejo a luz do dia a sair por lá. Alguém canta. De repente começo a sentir frio. Tenho a pele arrepiada.
Enquanto me aproximo lentamente da porta aberta vou prestando mais atenção à voz que dali sai. É limpida, pura, e eleva-se suavemente no ar, suspende-se, para depois se abater sobre nós com toda a força da redenção. Não consegui conter o choro, baixinho soluçava. A canção parou e eu fiquei com a respiração presa, como se tivesse entrado num local sagrado e interrompido uma oração. Na borda da porta uma mão de criança empurrou-a gentilmente até que se fechou, com a luz do dia a desvanecer-se no meu rosto. Atrás de mim uma voz fina e melodiosa disse-me: Bom dia...
Sobressaltada virei-me e vi uma rapariga que não podia ter mais de sete ou oito anos a olhar para mim fixamente. O cabelo loiro muito arranjado, com tranças muito perfeitas, contrastava com a pele morena e o vestido ruço do uso.
"Bom dia" repetiu ela como se esperasse uma resposta...
"Bom dia", respondi, a medo. "Estás aqui sozinha?" Não pude deixar de pensar que era tudo demasiado estranho. A miúda era uma figura completamente improvável naquele cenário. Um pouco assustadora, até. Com uns olhos grandes fitava-me de forma insistente. "Chamo-me Alice. Queres brincar comigo?", perguntou. De repente, alguém gritou algures no corredor. Uma voz aguda, estridente mesmo, que me fez tapar os ouvidos, de tão desconfortável que era. "Aliiiceeee!!!!! Onde estás? Preciso de ti! Aliiiceee!!!" O meu coração começou a bater tão forte que parecia querer sair do peito. Senti um peso enorme e todos os meus movimentos ficaram presos, como se aquela voz me tivesse paralisado. Tranquilamente, a rapariga voltou-se e saiu em direção à porta no fundo do corredor. À medida que avançava disse baixinho: "É a minha mãe, está a chamar-se. Não devia ter falado contigo, és uma estranha..."
Avançou firme e fechou a porta acenando-me. De repente percebi que estava sozinha. Olhei em volta mas já não me lembrava de onde tinha vindo. "Que estúpida!" - desde que acordara que não fazia nada com nexo. Sempre me chamaram impulsiva, incontrolável, imprevisivel, e tal fama já me tinha custado um ou dois empregos e a minha quota parte de relações amorosas. Sempre gostei desta aura confesso, este ar de loucura sempre me deu uma sensação de liberdade, e uma força criativa que me levou pela vida sem que um único dia fosse igual ao anterior. "Nada de arrependimentos!" - sempre foi o meu lema - "Antes sofrer do que ficar sempre a perguntar-me e se..." - Foi por aqui que sempre regi as minhas decisões, sempre me atirei de cabeça, sempre agi antes de pensar, sem remorsos, apesar da ocasional mossa fisica e não só.
Mas agora estava perdida, à minha volta uma imensidão de portas fechadas e eu sem saber para onde me virar... "O que foi que fiz?" - sem saber bem como lembrei-me da minha mãe. Há anos que não pensava nela...
Há anos que não pensava nela. Desde que ela morrera que evitava sequer que qualquer recordação começasse a invadir-me os pensamentos. Mas a visão da miúda a acnar-me despoletou qualquer coisa em mim, como se de repente houvesse um flashback e fosse eu, de vestido e tranças, a sorrir para a minha mãe, cujo rosto se escondia atrás de uma máquina fotográfica. Subitamente, ouço as notas de uma melodia qualquer conhecida. Uma caixa de música. E volto à realidade. estou de pé no corredor de uma pensão manhosa no meio da cidade. Não sei que horas são, sequer, mas a minha figura começa a parecer-me ridícula. Que diabo, esquece esta gente estranha e vai-te embora, tens mais que fazer..., penso. À medida que penso nisto, ouço passos no andar de cima. Passos pesados, vagarosos. Lá em baixo, o homem do balcão manda um berro pelas escadas, na minha direcção: "ó menina, mas que raio anda a fazer aí em cima? Venha cá para baixo imediatamente! Ora essa!!!"
Chega... Vou-me mesmo embora, nem sei porque vim até aqui, a caminho! Não fosse aquela melodia da caixinha de música a abrandar-me lentamente os passos... De onde conheço eu aqueles sons arranhados?
"Menina? Então mas que é isto? Entra-me por aqui a dentro assim sem mais nem menos?" - a voz do homem soava cada vez mais zangada. Parei. Subitamente a ideia de descer as escadas e atravessar aquele hall imundo, com aqueles olhos àvidos sem me largar, tornava-se amargamente dolorosa. Não queria, não ia passar em frente aquela gente de novo.
"Mau! Assim zango-me! Desca daí!" - o tom irado era inconfundivel. Comecei a ouvir o som de passos decididos. Ele estava a SUBIR AS ESCADAS!!! Entrei em pânico! Sem saber bem porquê sentia que não me podia deixar apanhar por ele! Comecei a correr pelo corredor descontrolada até que vi ao fundo uma janela aberta que dava para uma escada de incêndio. Saltei para lá e subi o mais depressa que pude. No andar de cima voltei a entrar para o patamar. Sentei-me no chão sustendo a respiração à escuta. O homem no andar de baixo chamava por mim... Procurava-me... Passado pouco tempo um grito na recepção fê-lo desistir da busca e voltar para baixo a resmungar. Suspirei de alívio. Enquanto acalmava voltei a notar o som da caixa de música. Estava perto. Uma porta entreaberta deixava passar uma luz amarelada. Aproximei-me devagar. O som ia aumentando de intensidade. Eu conhecia tão bem aquela melodia... tão bem... Empurrei lentamente a porta. Lá dentro um quarto pequeno e vazio tinha ao centro um berço e uma mulher debruçada sobre ele. Uma das mãos estava dentro do berço, como se embalasse alguem, na outra pendia-lhe uma velha máquina fotográfica...
Quando os olhos se habituaram melhor à penumbra do quarto, percebi que o berço estava vazio. Não me aproximei muito, não quis assuatar a mulher. De qualquer forma, aproximei-me o suficiente para ver que, em vez de uma criança, lá dentro estava apenas a fotografia de um bebé. Uma fotografia antiga, a preto e branco, de uma criança que não devia ter mais de dois anos. Pensei se teria alguma relação com a miúda de tranças. Se a mulher deu pela minha presença, não sei. Não olhou para mim, não me dirigiu palavra. Continuava a embalar o berço ao som das notas metálicas de uma caixinha de música pousada no chão. Murmurava qualquer coisa, uma cantilena de embalar. É então que, ao tentar passar despercebida, encosto o meu braço a uma jarra em cima de uma mesa e esta cai, com grande estrondo, desfaz-se em pedaços no chão. Silêncio. a mulher pára de cantar e vira-se para mim. tem um olhar vazio, distante. As roupas são antigas e parecem cheias de pó. A pele das mãos é tão clara que me pergunto se aquela pessoa não será fruto da minha imaginação. "Desculpe, parti-lhe a jarra", tento dizer, bastante embaraçada. "Não faz mal, é apenas uma jarra". A voz dela sai-lhe enferrujada, como se não falasse há muito tempo ou se tivesse esquecido como se fala, ainda que, há poucos minutos, a cantiga murmurada soasse cristalina. Subitamente pergunta-me: "É tão raro vir aqui alguém visitar-me. Posso tirar-lhe uma fotografia? Gosto muito de fotografias, sabe, é como ter connosco um pedaço da alma das pessoas..."
"...assim levo sempre um pouquinho da tua alma comigo onde quer que vá... Assim nunca me deixas mesmo que não esteja contigo..." - terminei a frase num sussuro. A mulher na penumbra apenas sorriu. Consegui notar-lhe um soriso nos lábios apesar de mais de metade da sua cara estar tapada pela sombra. Com as lágrimas nos olhos dei um passo em frente, mas a mulher já tinha posto a camâra em frente à cara...
"A minha mãe é que me dizia sempre isso antes de sair de casa..."
Não consegui terminar a frase. De repente a mulher carregou no botão da máquina fotográfica e a luz do flash encadeou-me os olhos de tal forma que por momentos deixei de ver o quer que fosse à minha volta. Quando voltei a mim a mulher tinha desaparecido. Angustiada, murmurei: "mãe..."
Ao aproximar-me do berço vi que a fotografia já não era a mesma. Já não era uma criança, mas era eu, era a minha fotografia que agora estava depositada em cima da colcha branca com florinhas azuis...
"Como é possivel?" - murmurei... a fotografia não parecia um instantãneo e o encadeamento durou pouco tempo... não podia ser eu! Mas era, com os olhos muito abertos e uma expressão vaga, o cabelo ainda húmido e a velha camisa de dormir coçada. "Que sitio é este? Que sitio é este?" - assustada saí do quarto levando a fotografia comigo. O corredor estava muito brilhante. Ao fundo uma velha, com uma saia preta, um xaile de renda, o cabelo muito branco e as rugas vincadas no rosto, embalava uma criança sentada numa cadeira de baloiço. A madeira chiava enquanto ela se balouçava para trás e para a frente. Olhei para ela... ela viu-me e parou de se balouçar. Olhou a rir para mim. Levantou-se, com a criança a pender-lhe perigosamente das mãos, com um riso histérico e os braços esticados avançou para mim. "És tu, é tua, és tu, é tua!" gritava pendendo a cabeça ora para a esquerda ora para a direita!
Que sítio é este?, pensei. Desorientada, saí a correr dali. Aquele mundo não era de todo compreensível. O corpo doía-me e eu não sabia porquê. procurei encontrar um sentido naquelas pessoas. Em vão. À minha frente encontro um espelho. Olho para mim e não me reconheço. A luz apaga-se e eu deixo de sentir o que quer que seja. Não há barulho, não há cheiros, não há nada. A luz apagou-se. E foi ali que fiquei, até hoje, na penumbra, a recordar todos os rostos, todas as palavras e todas as emoções. Fim da história. No hay banda.